Peça de 1973, que reflete sobre os desafios da criação artística em tempos de censura e repressão, tem nova encenação que preserva o caráter crítico e metateatral que marcou a história do teatro brasileiro
Por Ubiratan Brasil
O sucesso do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, com Fernanda Torres estrelando a história originalmente criada por Marcelo Rubens Paiva, provocou um bem vindo interesse do público por um período histórico sombrio do Brasil, marcado pela ditadura militar (1964-1985). Os desmandos dos governantes daquele período, que se impunham pela violência e censura, inspiraram, ainda que por caminhos desviados, artistas a criarem obras marcantes. É o caso da peça Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), que ganha uma versão atualizada pelo Teatro do Osso e abre a programação teatral de 2025 no Sesc Bom Retiro na sexta-feira, dia 17.
Escrita em 1973 pelo ator, diretor, dramaturgo e poeta italiano naturalizado brasileiro, figura central do Teatro de Arena, a peça se destacou por expor os desafios de se fazer arte em um contexto de repressão. O texto de Guarnieri acompanha um grupo de teatro em seu processo de trabalho e ressalta as dificuldades que enfrentam dentro e fora dos palcos a dez dias da estreia. “O grande mérito da peça é permitir uma abertura para os problemas do presente, tornando a montagem ainda mais contemporânea”, comenta o diretor Rogério Tarifa, que cuidou da dramaturgia ao lado de Jonathan Silva e de membros do Teatro do Osso.
Enquanto pressões externas, como dívidas e restrições financeiras, ameaçam o andamento da produção, a trama reflete a precariedade e a persistência da arte em tempos complexos. Com improvisações baseadas em relatos reais de moradores da cidade, o espetáculo revela as tensões sociais e econômicas que permeiam o cotidiano, reafirmando o teatro como espaço de resistência e transformação. “Nosso grupo se interessa em pesquisar o teatro brasileiro criado nos anos 1960 e 1970. Devo muito do que aprendi a essa geração de artistas”, conta Tarifa, lembrando que o interesse pela peça surgiu antes da pandemia do coronavírus.
O processo começou com uma grande conversa com o ator Othon Bastos, cuja produtora financiou a montagem de 1973, além da atriz Sonia Loureiro, que participou da montagem original. “Ele foi enfático em nos aconselhar a atualizar as questões políticas, pois um grande mérito da peça é dialogar com seu momento presente”, comenta o diretor, que mantém uma das inovações da produção original, o de trazer depoimentos da população, forma engenhosa encontrada por Guarnieri para trazer problemas sem que isso despertasse a ira da censura militar.
Na versão atual, alguns depoimentos aparecem gravados, mas diversos atores estarão espalhados pela plateia e, como um coro, darão depoimentos ao vivo. Com improvisações baseadas em relatos reais de moradores da cidade, o espetáculo revela as tensões sociais e econômicas que permeiam o cotidiano, reafirmando o teatro como espaço de resistência e transformação.
Além disso, a montagem contará também com músicas originais compostas por Jonathan Silva, que utilizou trechos do texto de Guarnieri como ponto de partida. “A presença de canções é uma constante do trabalho do Teatro do Osso, que definimos como ato-espetáculo musical”, diz Tarifa, que conta com William Guedes na direção musical.
Outro grande destaque é a presença da atriz convidada Dulce Muniz, que interpreta a personagem Flora. Ela fez parte da fase final do Teatro Arena, acompanhando os problemas que marcavam o trabalho do grupo, o que permitiu unir as características de 1973 e da atualidade, estabelecendo diálogos entre esses dois momentos. Uma das mais famosas frases do espetáculo, “Nós vamos estrear nem que seja na marra!”, dita pelo personagem Fernando, ecoava como um manifesto dos artistas contra a censura.
“Quando ouvimos pela primeira vez o nome Um Grito Parado no Ar, isso nos provocou uma reflexão profunda. Quais gritos estão parados no ar? Seriam gritos negativos ou violentos? O título criado por Guarnieri é muito preciso e realmente convida à reflexão”, reflete Tarifa.
Uma exposição virtual estará em exibição durante toda a temporada. Do Canto ao Grito – Um Estudo sobre o Teatro Épico no Brasil reúne músicas, vídeos, documentos históricos e materiais desenvolvidos ao longo do processo criativo. A mostra enriquece a experiência do espetáculo ao ampliar debates sobre temas como censura, violência e desigualdade, reafirmando a relevância da obra de Guarnieri no diálogo entre passado e presente da sociedade brasileira. O site é www.teatrodoosso.com.br
Também imperdível promete ser o debate Um Grito Parado no Ar de 1973 a 2025, programado para o dia 12 de fevereiro, às 19h, com entrada gratuita. Na ocasião, Sônia Loureiro vai se encontrar com Dulce Muniz e Renato Borghi, ator que, junto a José Celso Martinez Corrêa e Amir Haddad, fundou o Teatro Oficina em 1958. Com mediação de Rogério Tarifa, os artistas vão falar sobre teatro, representatividade, história e ditadura.
Serviço
Um Grito Parado No Ar
Sesc Bom Retiro. Alameda Nothmann, 185.
Sextas e sábados, 19h30. Domingos, 18h. R$ 60
Até 16 de fevereiro (estreia 17 de janeiro)