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“Terrapreta” é a transformação de um sonho em peça criada e protagonizada por indígenas e artistas brancos 

Sinopse

Espetáculo, idealizado pela atriz Helena Cerello, buscou inspiração no livro de Rita Carelli para derrubar estereótipos em torno dos povos originários

Por Dirceu Alves Jr.

Na reta final de 2022, a atriz paulistana Helena Cerello, de 47 anos, colhia os resultados do solo O Peso do Pássaro Morto, versão do romance de Aline Bei, que estreou no formato digital e, com o alívio da pandemia, ganhou as plateias presenciais. “E agora? Qual é o seu próximo projeto?”, perguntou um amigo, o cineasta Sérgio Machado, em tom de provocação. 

A artista tinha acabado de ler Terrapreta, livro de Rita Carelli, que parte de sua experiência, ainda na infância, de morar em uma aldeia no Alto Xingu, junto do pai, um arqueólogo. “Naquela noite, eu sonhei que estava fazendo uma peça baseada em Terrapreta e, na manhã seguinte, entrei em contato com a Rita para conversar sobre os direitos autorais”, conta.

Em meio à convivência com os povos originários, na fase de pesquisa e preparação do espetáculo, Helena descobriu a profunda relevância dos sonhos para ditar o dia e as decisões deles. “Hoje, tenho noção do quanto foi importante o que me aconteceu no meio daquela madrugada de sono”, reconhece. “Estava impactada por um livro escrito por uma branca que trata da cultura indígena a partir de seu ponto de vista, e ela conquistou esse lugar de fala porque desde menina viveu entre esses dois mundos.”

Cena de Terrapreta A Peça (Sonho). Foto Ronaldo Gutierrez

Terrapreta começou como um sonho e virou uma peça. Por isso, sob a direção de Nelson Baskerville, o espetáculo Terrapreta A Peça (Sonho), que estreou no dia 20 e pode ser visto somente até o próximo domingo, 30, no Espaço Parlapatões, ganhou a cena com base na escuta. Na sinopse oficial, Ana (interpretada por Helena) vai viver o luto da perda da mãe no Alto Xingu, passa pela experiência do Kuarup (o ritual da despedida dos mortos) e, duas décadas depois, em Paris, realizando o mestrado, recebe uma caixa com todos os objetos do tempo vivido na aldeia – o que dá início a uma sequência de memórias da sua formação.

“A gente conta a história do Kuarup, que é a grande festa local, em que os povos originários choram os mortos para depois se alegrar de novo, com uma família do Alto Xingu no palco”, afirma Helena. “Se o espetáculo é sobre eles, então vamos fazer com eles, sair do estereótipo é algo que deve ser feito junto, entre os indígenas, a literatura, o teatro e os artistas como um todo.”

A dramaturgia, construída por Barkerville e Helena, contou com a colaboração de Mapulu Kamayura, de 55 anos. Ela foi a primeira pajé mulher do Alto Xingu e integra o elenco da peça ao lado do marido, o pajé Raul Yawalapiti, de 66, dos filhos Yutah Kamayuva, 10, e Maira Yawalapiti, 20, além de Kuratu Yawalapiti, 34, que é casado com Maira, e da atriz potiguar Lucianna Lima e do ator paulista Eugênio La Salvia. Os dois netos de Mapulu e Raul também vieram a São Paulo e, pontualmente, podem entrar em cena. 

Outra cena de Terrapreta A Peça (Sonho). Foto Ronaldo Gutierrez

Helena não ficou no papel passivo de observadora ou mera pesquisadora, focando seus olhos verdes nas páginas dos livros ou na tela do computador. Em agosto passado, a atriz foi para o Alto Xingu, acompanhou todas as etapas do Kuarup e, durante a viagem, conheceu Mapulu, o que redefiniria todo o seu ponto de vista e ditaria um novo caminho ao projeto. 

Choveu torrencialmente na abertura da mais importante celebração da aldeia. Ninguém nem se lembrava da última vez que algo parecido acontecera. No início do dia, uma cigarra começou a cantar e, à tarde, o tempo nublou. “Ih, vai chover”, alguém soprou próximo a Helena e não tardou para a tempestade desabar. De repente, um raio caiu sobre uma oca e fogo e chuva se misturaram, o caos se instaurou e a visitante, tão perdida como uma paulistana fora do roteiro, ouviu um grito: “Chama a Mapulu!”

“Quem é essa?”, pensou a loira entre os indígenas. Ela fez tudo parar, a chuva, o fogo, impôs o seu respeito para controlar o caos e, na cabeça de Helena, foi ali que a peça deixou de ser só sonho para começar a virar peça. “Eu estava encontrando dificuldade de me aproximar das mulheres de lá, todas ficavam na cozinha, cuidando dos preparativos da festa, tentava entrevistar, mas não chegava de fato nelas, até que eu conhecia a Mapulu”, recorda. “Ela é uma grande contadora de histórias, não para um segundo, é como uma médica, traz vida para quem está morrendo, traz cura para quem enfrenta alguma questão, é conselheira e olha por todo mundo.”

Impressionada com a intensa atividade da pajé, a artista, hoje reconhecendo ingenuidade, perguntou em que momento ela descansava. “Mapulu me olhou com um sorriso no rosto, perguntou se um dia podia ir para a minha casa descansar e, quinze dias, depois desembarcou em São Paulo”, lembra. A estada para a temporada de apresentações é a quarta visita da pajé à capital paulista e, sozinha, ela só veio da primeira vez, quando se hospedou na casa de Helena, no bairro da Pompeia. Na segunda, carregou junto Raul, depois, além do marido, chegou o filho e, agora, estão em sete ao todo. “Eles trouxeram a legitimidade de a gente fazer uma peça com a voz deles”, observa a atriz. “Mapulu participou de todo o processo de dramaturgia e, mesmo sem saber ler e escrever, escreveu uma peça conosco”. 

Em quatro décadas de carreira, como ator e diretor, Nelson Baskerville garante que Terrapreta A Peça (Sonho) é o trabalho mais difícil de que já participou. Quando aceitou o convite de Helena enxergou que não seria fácil, mas, na prática, os desafios se multiplicaram por dez. “Fui dando muitas voltas até entender o que nós poderíamos fazer e, só no último um mês e meio, aprendi o que deveria ser feito”, diz. “Era mais importante nós, os brancos, nos adaptarmos a eles ou estaríamos, mais uma vez, reproduzindo o papel do colonizador.” 

O ritual em Terrapreta A Peça (Sonho). Foto Ronaldo Gutierrez

Baskerville deixou a família de Mapulu e Raul completamente livres, sem a necessidade de repetir cenas e movimentos e, por isso, segundo ele, os ensaios estão muito próximos do que é a peça que pode ser vista no Espaço Parlapatões. Para o encenador, o espetáculo resultou em uma celebração da amizade e de uma ideia utópica de que é possível derrubar as diferenças e nos enxergarmos uns no mundo dos outros com respeito e escuta. 

Das referências prévias e pesquisas, quase nada ficou e tudo isso caiu para que nascesse um verdadeiro processo coletivo – expressão comum no meio teatral, mas que, na maioria das vezes, se define mediante o controle de um líder. “Estou muito feliz porque precisei reaprender como se faz um espetáculo e criamos um carinho e uma admiração mútua que não vejo na nossa bolha tradicional do teatro.” 

Serviço

Terrapreta A Peça (Sonho).

Espaço Parlapatões. Praça Franklin Roosevelt, 158, centro.

Quarta (26) a sexta (28), 20h30. Sábado (29), 17h e 20h30. Domingo (30), 19h. R$ 30  

Até domingo, dia 30

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Ficha Técnica

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Serviço

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