Atriz escreveu e dirige o espetáculo que estreia no Sesc Ipiranga, depois de virar curta-metragem e peça on-line, enquanto planeja montar a história de seu pai
Por Dirceu Alves Jr.
Países da América Latina, como a Argentina e o Chile, conservam uma forte tradição teatral de revisitar personagens que lutaram contra as suas ditaduras. No Brasil, tal inspiração é bastante rara nos palcos e um pouco mais vista no cinema, ainda que o comum nas telas seja fechar o foco em episódios históricos e não tanto em biografias.
Baseada nesta constatação, a atriz paulistana Sara Antunes, de 41 anos, desenvolve uma pesquisa em busca de perfis capazes de recontar a história política do país e manter viva a memória em torno do período militar. “A minha geração é filha daqueles que sofreram com a ditadura e poderia ser menos doloroso deixar para a próxima a tarefa de resgatar estas histórias”, afirma a artista. “Só que considero urgente trazer à tona pessoas que entregaram os corpos em nome de uma luta até para contrastar com quem se acha acima do bem e do mal e, no máximo, usa as mãos para protestar no Instagram.”
A partir da sexta-feira, 27, no Teatro do Sesc Ipiranga, Sara faz a sua parte nesta transformação de consciência com a estreia do espetáculo Dora, escrito, dirigido e protagonizado por ela. Dora é a mineira Maria Auxiliadora Lara Barcelos (1945-1976), estudante de medicina que, aos 23 anos, foi presa, torturada e banida do país, depois de libertada no grupo de setenta nomes em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher (1913-1992).
A guerrilheira viveu o exílio no Chile, Bélgica, França e Alemanha, onde, em 1976, cometeu suicídio, jogando-se diante de um trem em Berlim. Mas, por trás dessa militante corajosa e desafiadora, quem era Dora? É em busca da personalidade desta mulher que Sara corre desde 2016, quando começou a sua pesquisa. “Na verdade, foi um pouco antes, em 2015, quando trabalhei no espetáculo Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos, baseado na história de mulheres que participaram da Guerrilha do Araguaia”, conta. “Estava grávida do meu filho Antônio e, diante de tantos temas sensíveis, eu criava durante o processo muitas cenas sobre a relação de mães e filhas que viveram a ditadura.”
Em 2016, já impressionada com o pouco que conhecia sobre Dora, Sara participou do filme Alma Clandestina, híbrido de documentário e ficção dirigido pelo cineasta português José Barahona sobre a militante. “Eu cheguei para o teste com um figurino vermelho e convicta de que ganharia o papel, o que não é nada comum, porque atores e atrizes fazem dezenas de testes que não dão em nada”, lembra.
Diante de tanta determinação, Barahona se emocionou com a performance de Sara e, claro, a personagem ficou em suas mãos. “Eu estava em pleno estado criativo e, para o diretor, Dora tinha apenas as problemáticas políticas e não via as questões de gênero influenciarem a sua biografia da mesma forma que eu”, diz a artista, convencida de que poderia propor novas abordagens. “Ela, por exemplo, entrou na faculdade de medicina em terceiro lugar em uma época em que 90% dos alunos eram homens.”
Na estreia de Alma Clandestina, Sara recebeu das irmãs de Dora toda a correspondência trocada entre a guerrilheira e a mãe, Clélia Lara Barcelos, no período de prisão e exílio. “São suas, faça com estas cartas o que achar melhor”, apontou uma das irmãs. A atriz mergulhou de cabeça nos escritos e planejava estrear o espetáculo em 2020. Veio a pandemia, o teatro parou e Sara, na ansiedade artística de mostrar a criação ao mundo, percorreu os caminhos possíveis na época.
O curta-metragem De Dora, por Sara foi lançado na Mostra de Cinema de Tiradentes em 2021 e, na sequência, uma adaptação on-line do que seria o espetáculo estreou nas plataformas digitais. A versão presencial definitiva, entretanto, não saía de sua cabeça. “Em cada projeto que entrava, eu só tinha um pensamento na cabeça: ‘Quando a Dora vai se concretizar de vez?’”, conta a atriz.
Chegou a hora, e, na visão de Sara, os escritos de Dora chegam ao palco permeados por um olhar sensível e artístico que já fazia parte de sua gênese. “Ela não se contentava com as palavras nas cartas, misturava letras de músicas, desenhos e era tanta subjetividade que parecia sempre estar um tom acima da realidade”, observa. O palco se transforma em um espaço dinâmico em que sua presença explora resistência e memórias. A trilha inclui canções dos tropicalistas, da cantora e compositora chilena Violeta Parra e poemas musicados de Torquato Neto, muitos deles comentados nas cartas. “É um material vasto, tem coisas que eu gostaria de colocar em cena, mas a peça não comporta”, comenta.
Enquanto Dora ganha o palco, Sara cria coragem para mexer em um outro personagem combativo: o seu pai, o ex-padre e psicanalista Inácio de Loyola Bueno (1926-2007), que foi preso, torturado e passou oito anos exilado entre a Europa e a África. Mineiro, Bueno morava em Volta Redonda (RJ) e, já religioso, se envolveu com os movimentos sindicalistas e contrários à ditadura. “Meu pai tinha muito mais uma vocação humanista que política e, cada vez que vejo o Padre Júlio Lancellotti, me lembro dele.”
Bueno foi preso duas vezes, e a Igreja o tirou do Brasil. Na França, ele abandonou a batina, estudou psicanálise e, de volta ao seu país, conheceu em um congresso a psicóloga Angela Bicalho Antunes, que se tornaria a mãe de Sara e, por coincidência, havia sido freira. Quando pesquisa sobre seu pai nos autos da ditadura militar, Sara encontra a descrição de Bueno como “um sujeito de alta periculosidade e ameaçador para a sociedade”. A filha respira fundo e pensa em, do seu modo, através do teatro, fazer justiça. “Meu pai era aquela pessoa que recusava a matar um inseto porque acreditava que todos deveriam ser livres, como pode ter sua história registrada dessa forma?”, pergunta-se a atriz, dramaturga e diretora, enquanto reúne forças para criar sua resposta.
Serviço
Dora.
Teatro do Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga.
Sexta, 21h30; sábado e domingo, 18h30. R$ 50.
Até 20 de outubro (a partir de 27 de setembro)