Espetáculo “E Vocês, Quem São?”, escrito por Jonathan Raymundo, promove um debate sobre raça, gênero e classe
Por Fabiana Seragusa
Samuel de Assis chorou muito quando leu a versão inicial do texto de E Vocês, Quem São? pela primeira vez. Segundo ele, foi uma catarse absurda ver nas palavras escritas pelo amigo e dramaturgo Jonathan Raymundo tudo aquilo que ele já sentia e tinha necessidade de transformar em arte. “Era uma coisa que já estava dentro de mim há muito tempo e eu não sabia como expressar, não sabia como falar”, explica o ator.
Jonathan conta que escreveu tudo em apenas três horas, até porque falar sobre a realidade brutal e violenta vivida pelas pessoas pretas já era algo que o inquietava, por meio de argumentos e reflexões. “O pensamento pensa a si próprio. Só fui um canal. Só um meio”, conta.
A peça apresenta um apanhado histórico de um Brasil racista e inquisidor, por meio da trajetória de um personagem que está sendo condenado por um crime. Machado de Assis surge como uma forma de reflexão sobre “a crueldade que é o embranquecimento dos gênios pretos”, ressalta Samuel, que mantém uma relação estreita com o teatro e ganhou ainda mais visibilidade junto ao público com a novela Vai na Fé, finalizada em agosto.
Sobre o impacto do espetáculo E Vocês, Quem São? no público, Jonathan diz que a obra tensiona nossa musculatura e nossos espíritos, gerando angústias próprias de quando ganhamos consciência sobre os processos injustos – e somos provocados a agir. “O Samuel no palco não desvia o olhar, não perde o público de vista, encara. Ao mesmo tempo que a atuação e o cenário geram beleza, o conteúdo é muito sério e não deixa ninguém se esquivar. O público é levado ao mal-estar, que, se ouvido, pode mudar o mundo.”
Em cartaz no auditório do Sesc Pinheiros até 14 de outubro, o espetáculo tem direção geral do próprio Samuel, com direção musical de Larissa Luz e Os Capoeira, grupo composto por Felipe Roseno, Mestre Dalua, Cauê Silva e Leandro Vieira. Márcio Macena assina a direção de Arte, e os figurinos são de Meninos Rei, por Junior Rocha e Céu Rocha.
Bate-papo com Samuel de Assis
Você disse que, quando leu o texto da peça pela primeira vez, começou a chorar muito. Foi pelo conteúdo, em si, e também pelo fato de poder apresentar essa história importante e potente em cena?
Sim, chorei. Primeiro, porque foi um susto, era uma coisa que já estava dentro de mim há muito tempo e eu não sabia como expressar, não sabia como falar. E quando você vê, através das palavras de outra pessoa, tudo aquilo que você quer discutir, tudo aquilo que você quer botar pra fora, tudo aquilo que você quer levar para o maior número possível de gente, é de uma catarse absurda. Eu tive essa reação, e muitos dos que irão assistir ao espetáculo também pode ser que tenham, sabe, por um ou por outro motivo. Mas o caminho é sempre uma catarse desse espetáculo, e isso é o que me deixa mais feliz.
Do início de sua carreira até hoje, o que você percebe que mudou no mundo artístico em relação à participação de pessoas pretas? A evolução foi muito pequena?
Sim, a evolução é pequena, mas está mudando. Eu acho que temos um número muito maior de pessoas pretas em todos os ramos da arte, em geral. Seja na atuação, na parte técnica, na parte de criação, de conteúdo, então isso é um fato, a gente está vendo isso acontecer, mas ainda tem um caminho muito longo pela frente. Ainda tem um caminho árduo de fazer o público entender que a gente precisa desse lugar, que a gente precisa estar aí, e que eles precisam ouvir e precisam colaborar com esse lugar, com essa presença.
E eu acho que falta também as pessoas de hoje, que estão no lugar do trabalho artístico, aprenderem a lidar com essa nova realidade. Porque muitas vezes a gente alcança um lugar que sempre desejou, um lugar que é merecido, um lugar que sempre foi nosso, mas quando a gente começa a fazer o trabalho, em si, não consegue trabalhar direito, porque as pessoas não sabem lidar, as pessoas não estão preparadas para o novo lugar, para ver o preto ocupando esse lugar, sabe. Acho que é isso o que acontece, então ainda tem um caminho árduo pela frente.
Como a figura de Machado de Assis aparece na peça?
A figura do Machado é uma figura muito enigmática para o brasileiro, né, porque é o maior gênio que a gente tem na nossa literatura, e, por ser isso, o Machado foi embranquecido. A gente aprende na escola, e a personagem fala isso durante a peça. A gente aprende na escola que ele era branco. Como só existia foto em preto e branco, as imagens que a gente vê e conhece do Machado de Assis era dele branco.
Então, eu acho que isso é um exemplo utilizado no espetáculo, dessa crueldade que é o embranquecimento dos gênios pretos, a não aceitação de um preto ser um gênio, que a gente vive, que é a nossa realidade. Então, a gente só serve para duas coisas: para ser descartado, se a gente não for um gênio, ou para ser embranquecido, caso a gente o seja. E acho que o Machado entra como exemplo, como um ponto de partida pra gente narrar essa história verdadeira do Brasil.
O que fazer para que se consiga divulgar teatro de forma mais ampla? Para que, cada vez mais, ir ao teatro seja algo do dia a dia de grande parte das pessoas? Porque espetáculos e artistas de alto nível nós já temos.
Sim, sim, nós já temos espetáculos e artistas de alto nível desde sempre, mas eu acho que falta um trabalho de fomentação de público. Porque a cultura do brasileiro é uma cultura que já começou equivocada, já começou cheia de atravessamentos, cheia de invasões, então eu acho que a gente precisa começar a fazer um trabalho, um movimento político de educação e de fomentação à cultura, para que a gente forme esse público e faça o público acreditar que é importante pra eles a cultura.
Eu acho que isso é um trabalho em conjunto dos artistas, dos políticos, principalmente, porque é quem está lá no poder para fazer esse tipo de coisa, e da mídia, dos jornalistas em geral, que têm que fazer o público entender que eles precisam da cultura. Porque hoje em dia a gente tem uma mídia que ensina para o povo que o importante para eles é saber quem é gay e quem não é, quem está comendo quem, entendeu?
Então, acho que a gente precisa fazer um trabalho maciço. Os artistas, de fomentação de público, brigar para que os políticos façam o papel deles, que é fomentar o público, e, paralelo a tudo isso, a mídia tem que fazer também, junto com a gente, um trabalho de fomentação de cultura, fazer o público acreditar que o importante pra ele é entender, aceitar e participar ativamente da vida cultural do país.
Serviço
E Vocês, Quem São?
Sesc Pinheiros – Auditório. Rua Pais Leme, 195 – Pinheiros. Telefone: (11) 3095-9400
Quinta a sábado, 21h. No feriado do dia 12 de outubro, a apresentação acontece às 18h. R$ 30
Até 14 de outubro