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“Para Meu Amigo Branco” leva o debate do racismo para a rotina escolar 

Sinopse

O espetáculo, inspirado em livro de Manoel Soares e dirigido por Rodrigo França, quer provocar o público que se diz contra o preconceito, mas reproduz a discriminação mesmo sem perceber 

Por Dirceu Alves Jr.

Eram três irmãos gêmeos. Gêmeos e pretos. Fábio, Nelson e Rodrigo, nascidos em 1978, foram criados no bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, e, nos anos de 1980, estudaram em uma escola privada e religiosa de Ramos, perto de lá. Travessos como a maioria das crianças, ficaram conhecidos entre professores e colegas como os “Irmãos Metralha”, em referência a uma quadrilha popularizada pelas animações e histórias em quadrinhos de Walt Disney. Dois anos mais novo, Bruno, um quarto irmão, por coincidência nasceu no dia do aniversário dos trigêmeos e, pouco depois, foi matriculado no colégio. Ficaram sendo, então, os “Irmãos Metralha + 1”.

Hoje, Fábio trabalha com produção, Nelson é militar e Bruno, um empresário. Rodrigo França, de 46 anos, trilhou o caminho das artes, formou-se em filosofia, deu aulas como professor universitário e ganhou reconhecimento como ator, dramaturgo e diretor de teatro e cinema. Pensando, com o devido distanciamento sobre a alcunha de infância, França levanta a questão de um racismo recreativo visto na televisão e replicado nas escolas, naturalizando ofensas constantes. “Eu e meus irmãos não tínhamos nome, éramos tratados como os trigêmeos e, de forma perversa, nos deram o apelido de ladrões”, lembra França. “Éramos levados para a secretaria por qualquer motivo, as suspeitas sempre recaíam sobre nós e enxergo que a escola reproduzia o racismo do estado.”

A reflexão sobre os tempos de estudante se materializou no palco. França é o diretor do espetáculo Para Meu Amigo Branco, adaptado por ele e Mery Delmond, com inspiração no livro homônimo do jornalista Manoel Soares, que estreia nesta sexta (1º) no Sesc Belenzinho, depois de bem-sucedida carreira no Rio de Janeiro.

Cena da peça Para Meu Amigo Branco. Foto Bárbara Cabral

O livro é um manual antirracista que mostra como o preconceito se enraíza desde a infância e, a partir desta ideia, França e Mery criaram uma história em torno do comportamento contraditório das pessoas, principalmente aquelas que negam o preconceito. Os atores Reinaldo Junior e Alex Nader e as atrizes Stella Maria Rodrigues, Mery Delmond e Marya Bravo representam os participantes de uma reunião de pais e professores em uma escola dita progressista para discutir um caso de discriminação. 

A aluna Zuri, de 8 anos, foi chamada de “negra fedorenta” por um colega branco. Enquanto a direção lida com a situação como um mero bullying, o pai de Zuri, Monsueto (interpretado por Junior), luta para convencer a todos que a situação é mais complexa. Um pai branco (papel de Nader), inicialmente solidário à causa, muda de comportamento ao saber que seu filho foi responsável pela agressão.

“Claro que temos professores engajados na luta, mas as escolas brasileiras continuam despreparadas para lidar com esta pauta”, salienta França. “As atividades que valorizam a cultura preta seguem restritas às aulas de capoeira ou um cronograma de novembro, em celebração ao mês da consciência negra.”

O cenário, criado por Clebson Prates, indicado ao Prêmio Shell carioca, coloca o público, junto dos atores e atrizes, sentado em carteiras escolares, como se fossem participantes do encontro. A proposta é que o espectador se reconheça naquele lugar para refletir o quanto qualquer um pode compactuar, mesmo sem perceber, com o preconceito no dia a dia.

Cena do espetáculo Para Meu Amigo Branco. Foto Sabrina da Paz

“O objetivo não é falar com o sujeito declaradamente racista, mas com aquele que pode ser o nosso amigo e não se percebe nesta estrutura de contradições”, declara França. “Porque estas pessoas, que podem ser artistas, de esquerda, progressistas, que não enxergam a realidade e não fazem nada para ajudar, são as que mais atrapalham.”

O ator Reinaldo Junior, de 32 anos, ressalta que Para Meu Amigo Branco se diferencia por enfocar aqueles que cometem e não quem sofre a discriminação. Para ele, o personagem Monsueto abre uma discussão em que os pretos sempre são silenciados e, embasado em sua intelectualidade e longe de qualquer violência, aponta onde estão os erros.

“Trazer à cena esse pai é tratar do sentido da masculinidade preta porque o Monsueto foge da obviedade, não está ali acuado, abatido, ele habita um lugar de pensamento que, normalmente, é destinado aos brancos”, diz o intérprete.     

“As pessoas não se conheciam como pretas”

Nascido e criado em Mesquita, na Baixada Fluminense, Junior conta que cresceu em um dos momentos mais bélicos em relação ao racismo, quando as chacinas se tornaram comuns no Rio de Janeiro. “As pessoas não se conheciam como pretas porque era muito pesado, perigoso, imagina você educar o seu filho preocupado se ele pode ou não correr pelas ruas”, indaga.

Junior, no entanto, fala que faz parte de uma geração que, na adolescência, começou a ter acesso a muitas discussões devido ao avanço da internet e isso gerou uma tomada de consciência que surte efeito nos tempos atuais, inclusive na televisão. “A representatividade nas novelas é consequência de uma luta antiga, porque não adianta só ocupar a tela, as nossas narrativas precisam estar ali representadas”, afirma ele, que, no ano passado, participou da novela Vai na Fé, da Rede Globo. “A televisão enxergou que era hora de se voltar para a população preta porque hoje temos orgulho de nós mesmos, então precisa ser mostra a nossa cultura, nosso jeito de falar, de se vestir, de se alimentar.”

Rodrigo França recorda que, há três décadas, quando começou sua carreira artística na companhia teatral do ator Antônio Pedro Borges (1940-2023), de preto eram apenas ele, a camareira e o segurança do teatro. “O mercado se abriu de certa forma para nós, mas ainda é muito aquém das necessidades”, reconhece. Ele cita como exemplo da falta de representatividade estrutural as várias novelas e séries adaptadas da obra do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) que sempre reproduziram os seus personagens como brancos.

“A sociedade brasileira ainda carrega uma necessidade de querer ser semelhante aos Estados Unidos e a Europa e essa mentalidade compromete os nossos trabalhos artísticos”, observa França. “Por isso é tão importante aprofundar essa discussão nas escolas porque lá, principalmente nas instituições privadas, estão sendo formadas as futuras lideranças do país.”       

Serviço

Para Meu Amigo Branco.

Sesc Belenzinho – Sala de Espetáculos 1. Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho.

Sexta e sábado, 21h30; domingo, 18h30. R$ 40

Até 24 de março. A partir de sexta (1º).

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Ficha Técnica

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Serviço

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