Des/Criativo’, solo de Kevin Braga, o palhaço 2 de Paus, faz graça com as tentativas de ser criativo em cena
Por Dib Carneiro Neto
Uma chance e tanto. Conhecer, em São Paulo, um espetáculo de palhaçaria vindo de Belém, no Pará. Ah, você vai exclamar, mas palhaço é palhaço, não importa onde nasceu… Quem disse? Kevin Braga, o palhaço 2 de Paus, está chegando ao Teatro Alfredo Mesquita para mostrar todas as peculiaridades de um clown “nortista”, como diz. O nome de seu espetáculo, um solo de sua autoria, é Des/Criativo – e você logo vai entender a razão.
“O espetáculo tem esse mote de falar ao público que não é nada criativo, mas acaba sendo, e muito, porque vão acontecendo coisas pelas quais as pessoas não esperam”, explica Kevin Braga, artista paraense, não-binárie, formada no curso técnico em ator pela Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA). “No começo, o palhaço até pede para a plateia baixar as expectativas a respeito daquilo que vai ver e que nada ali será diferente do que todo mundo já fez no palco. Mas no meio dessas repetições, clichês e fórmulas, vou trazendo novidades inimagináveis. Por exemplo, o personagem senta para ler um diário. Quantos já fizeram isso, não é? Mas no final há uma surpresa. Em outra cena, estou lendo uma revista e acabo descobrindo que minha história está sendo contada naquela revista. Cada cena de palhaço começa com algo que parece previsível, mas acaba completamente diferente.”
Kevin nos fala de criatividade: “Ser criativo, para mim, é justamente isso que acontece no espetáculo: fazer algo que ninguém espera, algo incrível que a pessoa nunca viu ou esperou que fosse acontecer.” E nos fala sobre a essência da arte da palhaçaria: “Ser palhaço é poder voltar à infância, é poder voltar a olhar as coisas com certa ingenuidade e certo carinho, porque, quando a gente cresce, vai deixando de perceber e de se importar com pequenas coisas que foram muito impactantes na infância. Sem esquecer que a gente lida ao mesmo tempo com a vida adulta. No final, é como se a gente ficasse com um pé na infância e outro na vida adulta.”
Bagunçando os cortejos
O 2 de Paus foi criado por Kevin para participar de cortejos nas manifestações populares de Belém. “Eu me vestia de palhaço”, diz, “e conversava com as pessoas, entrevistando principalmente os objetos que elas estivessem segurando, porque o meu palhaço queria ser um repórter fazendo esse tipo de traquinagem. O pega-trouxa, como se dizia no circo antigo. A pessoa de início ri da brincadeira, mas no final se sente um pouco enganada.”
E a palhaçaria paraense se diferencia mesmo da arte que se faz no restante do País? Kevin responde com muita propriedade: “A palhaçaria paraense – e nortista, em geral – puxa muito para esse lugar do encantamento, da beleza, conectando a arte do palhaço com a cultura popular e seu riquíssimo apelo estético. O palhaço de Belém quer sempre buscar uma forma de manter viva e enaltecer a sua cultura local, que ele experencia no seu lugar de origem. Não fujo à regra. Trago tudo isso no meu trabalho e na visualidade das minhas apresentações.”
E prossegue com mais detalhes de como isso aparece em Des/Criativo: “Belém é uma cidade que respira cultura de janeiro a janeiro. A gente tem a cultura de carnaval, com escolas de samba e as festas do Interior, mais tarde as quadrilhas juninas com seus concursos tão conhecidos (já fiz pare das comissões julgadoras de figurino), temos a manifestação teatral Pássaro Junino, que só existe em Belém do Pará, temos muito mais, o Círio de Nazaré, as danças do Retumbão (em devoção a São Benedito), Autos de Natal, as Pastorinhas, os arrastões do Arraial da Pavulagem , enfim, várias manifestações ao longo do ano. E eu trago para essa nossa brincadeira des/criativa, por exemplo, as fitas de cetim, que são muito utilizadas nas decorações e trajes de todas essas festas. Faço referência também aos nossos tradicionais brinquedos de miriti, que estampei no calção do palhaço. Em Belém, os palhaços têm essa tradição de se vestir em brechós e eu não deixo de citar essa referência da busca por brechós. Enfim, são coisas assim e muitas mais, que não posso revelar porque entregaria detalhes de cenas. O espetáculo tem um pouquinho de cada coisa que eu vivenciei em Belém e que faz sentido para caracterizar a arte da palhaçaria na região amazônica toda.”
Uma coleção de referências ilustres
Kevin Braga não deixa de citar também tantos artistas que inspiraram sua arte: “Minha referência maior é o grupo Palhaços Trovadores, de Belém do Pará, que acompanho desde criança. Eu sonhava em ser como eles e, nessas reviravoltas da vida, acabei trabalhando e vivendo com eles por um tempo. Entre eles, destaco o diretor e fundador do grupo, o Marton Maués, um mestre, um pesquisador, um estudioso, alguém que não se cansa de assumir a posição de aprendiz apesar do tanto que já sabe. Cito também o Marcelo Vilela, que foi meu primeiro diretor-palhaço, que me dirigiu em Brincanças, e por quem tenho muito carinho e gratidão. Gosto demais da história de resistência do Benjamim de Oliveira. Claro, Picolino, que me emocionava tanto. Estudei bastante, ainda, a obra do Arrelia. E Chaplin, o primeiro palhaço moderno, que admiro muito. Nossa, são tantos. Márcio Libar, Avner, Simioni, Puccetti, Grupo Meu Clown, do Paraná, muitos.”
Em Des/Criativo, a direção é de uma mulher, Lírio do Pará. Como se deu a relação com Kevin? A resposta é divertida: “No início e até hoje , a minha relação com a diretora é parecida com a de um paciente com sua psicóloga. Às vezes a gente se entende, às vezes – comicamente falando – a gente quer se matar. Ela consegue me tirar dos meus lugares confortáveis. Sou fã da organização extremada e gosto de esquematizar tudo, assim como o meu palhaço 2 de Paus também é assim, como eu. A Lírio entra nessa brincadeira para me desestabilizar completamente. Por exemplo, eu preferiria que os objetos de cena estivessem sempre nos mesmos lugares no palco, mas ela propôs o contrário: eles ficam espalhados e eu tenho de procurá-los durante a cena. Ou seja, saí do conforto, que virou um desafio. Ela também me desafia muito emocionalmente e, ainda, me estimula a praticar o erro, o caos. Isso é, de fato, a essência do palhaço e provoca muito riso nas plateias. Em Des/Criativo, a Lírio me des-direciona. E isso se tornou fundamental no meu trabalho. Só tenho a agradecer a essa pessoa incrível.”
Serviço
Des/criativo.
Teatro Alfredo Mesquita – Av. Santos Dumont, 1770
Sábados e domingos, 16h. R$ 20. Os ingressos também podem ser trocados por uma caixa de bombom, que será doada na Páscoa para crianças de instituições carentes.
De 16 a 31 de março