Já devolvidos à quase normalidade, redescobrimos o prazer de ir ao teatro – as plateias cheias e entusiasmadas são prova disso
Por Mário Viana*
A primeira onda de palmas na plateia de uma peça decretou, na prática, o fim da pandemia. Mesmo de máscara e separados uns dos outros, íamos assistir no palco uma apresentação única. Apresentações teatrais são sempre únicas, por mais técnicos que sejam os envolvidos. A emoção que percorre o ar da sala de espetáculos, seja num drama, num musical ou numa comédia, só acontece naquele dia. Nesse período, mais uma vez, o teatro mostrou que é um dinossauro resistente a qualquer meteoro.
Já devolvidos à quase normalidade, redescobrimos o prazer de ir ao teatro. As plateias cheias e entusiasmadas são prova disso.
Em São Paulo, a atual temporada teatral trouxe um bônus mais que especial: montagens e remontagens de textos clássicos, em todos os formatos e concepções. O único ponto em comum: ninguém mais tem medo de assistir uma peça clássica. Os espetáculos terminam sob aplausos e gritos de “bravo!” ecoando pelas salas. Há público de terceira idade, há público jovem, há de tudo.
Acredito que o diferencial disparado fica com o Rei Lear montado pela Cia. Extemporânea e acompanhado por plateias lotadas e muito entusiasmadas. Nesta versão, dirigida por Inês Bushatsky, uma das mais difíceis e apaixonantes tragédias de William Shakespeare ganhou uma adaptação ágil e respeitosa, assinada por João Mostazo – montada por uma trupe de drag queens. Foi a grande surpresa da temporada, com toda certeza.
Excelentes atores, os artistas da Extemporânea não fogem da batalha e exibem um Shakespeare potente – mesclado a algumas imagens icônicas do universo drag. Sem spoiler – a peça retorna ao Teatro Arthur Azevedo de 31 de outubro a 3 de novembro –, dá pra dizer que a cena em que Lear enlouquece ou que Gloucester tem os olhos arrancados estão entre as mais potentes do espetáculo. Drag e shakespeariano, ao mesmo tempo.
O autor inglês também apareceu em O Primeiro Hamlet, dirigido por Gabriel Vilella, e estrelado com brilho por Chico Carvalho, Cláudio Fontana e Elias Andreato, entre outros. Sendo um “Vilella autêntico”, não tinha nada de convencional. A plateia embarcava na proposta.
Da mesma forma, era sedutor o clima do Tio Vânia, produzido pelo Grupo Tapa, sob direção de Eduardo Tolentino de Araújo. Brian Penido Ross, Anna Cecília Junqueira, Zecarlos Machado, Camila Czerkes, Lilian Blanc e Walderez de Barros, entre outros, faziam que o texto de Anton Tchekov pudesse ter sido escrito um mês antes. Para quem vive de escrever – pra TV, teatro, onde seja –, é emocionante ouvir as reações do público atento.
O mesmo delicioso espanto atinge quem assistiu Hedda Gabler, que Clara Carvalho dirigiu esmeradamente no auditório do Masp. A heroína desagradável de Henrik Ibsen ganha corpo e atualidade nas atuações de Karen Coelho, Carlos de Nigro, Chris Couto e Sérgio Mastropasqua, só pra citar alguns do elenco afinadíssimo. É a mesma alegria que dá ao terminar sob aplausos a apresentação de A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, numa produção em grande estilo da companhia Os Satyros.
Até mesmo um clássico do século 20, como As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de R. W. Fassbinder, ganha roupagem nova e excitante em Petra, dirigida por Gabriel Fernandes, com excelentes atuações de Bete Coelho e Luíza Curvo, à frente de um time impecável.
A onda de clássicos não tem só remontagens. Já tivemos um instigante Estudo para Fantasmas de Henrik Ibsen, comandado por Sergio Ferrara, e uma adaptação atualizadíssima de Decameron, com os Parlapatões dirigidos por Hugo Possolo aproximando a Idade Média pestilenta dos tempos pós-Covid.
Fica a certeza que o teatro, em sua milionésima ressurreição, arrebata multidões fissuradas em textos de outros séculos – mas que retratam, como um bom clássico, tudo aquilo que faz de nós um amontoado de humanos querendo ouvir uma boa história. É bom pra todo mundo: quem faz, quem assiste, quem escreve…
*Mário Viana é dramaturgo, roteirista e cronista do blog www.vianices.WordPress.com