Peça ao ar livre da Cia. Variante, “A Cruzada dos Corações Puros (ou Quem inventou a guerra?)” é inspirada em poema de Bertolt Brecht e apoiada cenicamente no uso de máscaras da Commedia Dell’Arte
Por Dib Carneiro Neto
Uma situação muito provável de ter acontecido na sua casa nas últimas semanas: crianças angustiadas por verem os adultos da família comentando e sofrendo com o noticiário de guerra. Por que existem as guerras? O que faz uma guerra começar? Quem manda no andamento da guerra?
Uma peça infantil da Cia. Variante, que estreou em 2019 e depois ganhou versão digital na era da pandemia, está de volta à cena com esse tema infelizmente bem atual: a guerra. A partir de um poema de Bertolt Brecht sobre crianças em situação de guerra, o espetáculo A Cruzada dos Corações Puros (ou Quem inventou a guerra?) faz apresentações gratuitas, ao ar livre, dias 2, 4 e 5 de novembro, quinta-feira (feriado), sábado e domingo, às 16 horas, no hall de entrada do Sesc Pinheiros.
Na peça, a Cia. Variante, que completa 10 anos de trajetória, faz um paralelo entre as guerras históricas e as guerras atuais e recentes, incluindo nisso todos os problemas sociais que são uma espécie de guerra diária que acontece no Brasil. Um tema bem amplo e abrangente, que a companhia fez questão de tratar com muito cuidado e criatividade.
São 55 máscaras diferentes em cena!
A Cruzada dos Corações Puros (ou Quem inventou a guerra?) retrata (com utilização de máscaras) a vida de nada menos do que 55 crianças vítimas da guerra, ou seja, são 55 máscaras em cena, inspiradas na Commedia Dell’Arte. Por estarem órfãs e sem perspectivas, essas crianças decidem se unir para encontrar o autor do livro A História Mundial e pedir para que ele mude os rumos da história. Com música ao vivo, a peça é encenada sobre uma lona de 4X5 metros, como uma roda de teatro de arena.
O Canal MF conversou um pouco com o diretor Danilo Mora e a dramaturga Tati Takiyama, que também estão em cena, ao lado de Letthicia Johanson e Samantha Verrone. Como existe essa pergunta no subtítulo da peça, começamos por devolvê-la aos dois criadores: “Quem inventou a guerra? Responda o título da peça do seu jeito.” Tati Takiyama se saiu assim: “Aí fica o convite pra você assistir a peça e descobriremos lá! Hehehe.”
O diretor Danilo Mora respondeu: “Essa pergunta é o mote da peça e eu não tenho uma resposta fechada para ela, acredito que são muitas as respostas possíveis e o mais importante não é identificar quem inventou, mas sim refletir sobre essa questão complexa. Convido o público para assistir ao espetáculo e tentar nessa travessia chegar a uma resposta conosco.”
Questões sociais do cotidiano também são um tipo de guerra
“A peça foi escrita durante o processo da própria encenação, que durou 1 ano e 5 meses, entre muita pesquisa, experimentos cênicos e ensaios”, conta Tati. “Durante esse tempo, assisti a filmes fictícios e documentários e li muitos artigos e livros para entender com mais profundidade o universo da criança em situação de guerra. Então, quanto mais eu sabia sobre esse assunto, mais eu achava urgente e necessária a criação dessa obra. Ainda mais quando fazíamos paralelos com guerras atuais e também cotidianas que as crianças brasileiras passam no nosso contexto político-social.”
Como as crianças poderão ligar a peça ao que está acontecendo hoje no mundo? Como o público mirim poderá relacionar ficção com realidade? Diretor e dramaturga nos respondem. Primeiro, Tati: “Acho que a primeira identificação é com a idade das personagens. Elas têm sonhos, brincadeiras, vivem amizades, têm gírias e pensamentos legítimos de pessoas da primeira infância e da adolescência. E isso acaba trazendo uma conexão entre ficção e realidade. Mas, aos poucos, nosso público vai entendendo que cada pessoa tem sua particularidade quando vive no contexto ‘oprimido versus opressor’. A guerra está acontecendo o tempo todo em diversos lugares do mundo. E muitas crianças e jovens são vítimas dessas situações. Poder mostrar e dialogar sobre isso é urgente, ainda mais nesta fase de desenvolvimento do nosso público. Podemos contribuir com a possibilidade de um futuro melhor.”
Com a palavra, o diretor Danilo Mora: “Pelo próprio tema e título do espetáculo já é possível fazer ligação com o que está acontecendo no mundo, uma vez que o título da peça propõe uma pergunta, então, antes mesmo de o espetáculo começar, o público já é instigado a pensar e gerar reflexões. Mas, para além do óbvio que vemos diariamente nos noticiários, sobre a guerra do outro lado do mundo, o espetáculo também propõe um olhar para nós, para o nosso país, para o nosso estado, para a nossa cidade, para a nossa rua, trazendo uma lente de aumento para as ‘guerras’ cotidianas, como, por exemplo a fome, a violência, o trabalho infantil, a falta de moradia e tantos outros problemas sociais que assolam nossas realidades e que são tão cruéis quanto as guerras vistas nos jornais.”
A nosso pedido, Mora adianta sobre como se dá em cena o uso das 55 máscaras: “A escolha das máscaras como elemento cênico se deu durante o processo, enquanto pesquisávamos o teatro de rua, seu contexto político e histórico. Nesse sentido, não tinha como não passarmos pela Commedia Dell’arte como uma importante vertente do teatro feito nas praças e ruas e o potencial artístico de suas máscaras. No nosso espetáculo, o uso das máscaras vem como artifício cênico, que propõe mudança rápida nos corpos e atuações do elenco. O público pode identificar com clareza a mudança entre personagens e brincantes. As 55 crianças, retratadas no poema de Brecht, aqui são retratadas por meio dessas máscaras: cada artista carrega consigo as máscaras que vai manipular. As máscaras ampliam gestos, permitem personagens mais desenhados e, por se tratar de um espetáculo de rua, aumentam a possibilidade de serem vistos.”
Crianças conseguem brincar em meio à brutalidade
Danilo agora relata o que a sua direção acentuou no texto de Tati para falarem de tema tão árduo para crianças. Ele diz: “Eu acho que consegui fazer uma encenação em que o texto tem fácil entendimento e fluidez, pensando a partir da ideia de teatro popular, quando não é necessário estudo prévio para entender o que está sendo dito e mostrado. Minha proposta de encenação acentua a dureza da guerra por uma perspectiva vista pelo olhar da criança, que, mesmo em meio à brutalidade, ainda consegue brincar, sonhar e ter esperança. Nesse sentido, os textos são carregados de poesias, de diálogos simples e de fáceis entendimentos. A música também é um elemento importante no espetáculo e é executada pelo próprio elenco que toca e canta as canções compostas para a peça, o que também facilita a comunicação. Mesmo sendo um drama sobre a guerra, o espetáculo foi dirigido com gráficos, então tem bastante cena com comicidade, a fim de propor ao público um alívio cômico, reflexivo e não apenas emocional.”
Como é dirigir, no caso de Mora, e escrever, no caso de Tati, e estarem em cena ao mesmo tempo? “Quando eu crio uma dramaturgia e estou em cena”, comenta Tati, “eu tento separar o que é obra literária e o que é obra teatral. Escrevo pensando no espetáculo, claro, mas penso também no leitor. Que pode ser inclusive o elenco e o diretor. E quando vou para a cena, penso no espectador. Mesmo que a literatura e o teatro andem juntos, sei que são obras diferentes. Costumo não criar expectativas de qual personagem vou fazer ou se essa cena realmente vai entrar no espetáculo. Eu levo o texto como provocação, proposta e entrego aberta ao que pode acontecer com ele. Às vezes ele pode ser apenas uma inspiração para uma outra cena, texto ou imagem. Gosto de trabalhar dessa forma porque realmente acredito num processo coletivo.”
Danilo Mora relembra que tem feito esse processo de dirigir e estar em cena há 10 anos, desde o início da Cia. Variante: “Eu acredito que agora, para mim, isso já ficou bastante natural, acho que desenvolvi um método meu de direcionar o que compete à direção e o que se refere ao trabalho do ator. Tento não misturar as duas coisas nem os dois estudos, então esse processo demanda muito tempo e dedicação, mas eu acho isso tudo uma delícia, porque fico imerso no universo da peça.”
Experimentar o teatro vale mais do que entender tudo
“A Cia. Variante está completando 10 anos em 2023”, prossegue o diretor. “Temos quatro espetáculos no nosso repertório, todos eles pensados para infância e juventude e todos eles ainda em atividade e circulando. Acredito que isso seja algo a ser comemorado, ainda mais pensando que somos um coletivo independente, de teatro de pesquisa. Mesmo sem subsídios de editais para montar nossos espetáculos, conseguimos fazer montagens muito delicadas e detalhadas e conseguimos cada vez mais nos organizar como companhia.”
Tati Takiyama gosta de frisar que “o importante é que crianças enxerguem outras crianças”. Ela dá um exemplo no próprio espetáculo: “Temos uma personagem que é o ‘Menino Prateado’ e ele nunca consegue proferir o próprio nome. Ninguém sabe como ele se chama. Com o tempo, passamos a receber relatos de responsáveis, dizendo que suas crianças, depois de ver nossa peça, começam a perguntar os nomes dos meninos prateados nos faróis e metrôs.” Ela conclui: “Nem a criança nem ninguém precisa entender a peça como um todo. Mas estar aberta a experimentar o teatro e sentir o que sua bagagem de vida permitir que sinta.”
Serviço
A Cruzada dos Corações Puros (ou Quem inventou a guerra?)
Sesc Pinheiros (Praça) – Rua Pais Leme, 195
Dias 2, 4 e 5 de novembro de 2023, quinta-feira (feriado), sábado e domingo, às 16h. Gratuito