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O palco como caminho

Um dos mais célebres encenadores brasileiros, Fauzi Arap (1938-2013) traça aqui caminhos seguros para um ator conseguir o devido valor cênico

Por Fauzi Arap

“Quando Fauzi Arap morreu, todo seu arquivo onde ficaram gravados seus apontamentos e reflexões criativas e intimas, ficaram comigo. Hoje gostaria de dividir com vocês. Acredito que seus textos são de muita importância para nós. Me sinto confortável e acredito não estar invadindo sua intimidade sem ser cuidadoso e respeitoso” (Elias Andreato)

1 – APAGAR A HISTÓRIA PESSOAL
A identidade familiar do candidato a ator é o primeiro obstáculo no caminho da descoberta de sua plena potencialidade. Há que descobrir o prazer do mergulho no vazio, para longe do conforto e segurança de sua identidade pessoal e descobrir ali o centro de operações, a partir do qual poderá atuar. Isso não significa uma ausência e, às vezes, é necessário algum tempo até que ele aprenda a conectar-se de forma correta. Para isso, ele precisa reconhecer e compreender suas características particulares, como na psicanálise, para aprender a deixá-las de lado, sempre que preciso. Os introvertidos e tímidos, que vivem de forma desconfortável em sua vida pessoal, conseguem mais facilmente se desvencilhar. A introversão fez com que, no passado, tenham disposto de muitas horas de silêncio e observação em suas vidas, o que forma um capital inicial inestimável.
No palco, o ator se encontra com o desconhecido. Nada é um presente. Há que estar desperto e com respeito, mesmo com medo, para ter segurança. Se fracassa, terá perdido apenas uma batalha. O caminho é inesgotável e desde logo ele deve aprender com seus fracassos. Existe em cada um de nós a consciência oculta de que somos capazes de nos identificar com os tipos mais variados, santos e vilões, e com todos os que fazem parte daquilo que se chama Humanidade.
Permanecer no próprio eu por muito tempo produz uma fadiga terrível. Um homem assim fica surdo e cego para tudo o mais, o que o impede de ver as maravilhas que estão a sua volta. O ator tem o privilégio de exercer uma arte que pede que ele se desidentifique de si mesmo. Sua profissão possibilita que ele explore a grandeza do universo refletida e oculta nas personalidades de todos os homens que o cercam.

2 – TRANSFORMAÇÃO
O que caracteriza a ação dramática é o conflito. E não apenas o conflito entre as partes, mas o conflito consigo mesmo. Mesmo o ator, ele mesmo, quando decide aprender a arte de representar, enfrenta, a cada passo, o desejo de não abandonar sua segurança, sua identidade. Ele quer e não quer aprender a representar. Logo, ele descobre que a plateia, simbolizada pelo professor ou diretor nas aulas ou ensaios, faz com que ele não se esqueça de si. E também aprende logo que a simples imitação não é boa representação. Há que descobrir dentro de si mesmo, o lugar ou estado a partir do qual é possível criar e agir. Das primeiras vezes aquilo parece um pequeno milagre onde uma voz interior aflora e lhe sopra o que fazer. Quando se consegue essa ligação não há como errar. Embora o conflito seja fatal à ação interior para que haja movimento e vida, ele percebe que existe uma consciência, como que um “duplo” que se mantem à parte e o guia.
Desde o início é importante compreender a importância da sobriedade e do equilíbrio. O ator não pode nem deve centrar no sucesso e no aplauso a referência principal de seu trabalho. É fundamental aprender a trabalhar de dentro, referido pelo desejo genuíno de estar em contato consigo mesmo, um caminho que o levará ao crescimento espiritual, que independe do sucesso objetivo. Aliás, é importante não repousar na gratificação que traz o sucesso, mas aprender o prazer de continuadamente desafiar-se de dentro, para crescer, cada vez mais. Sobriedade e equilíbrio são insubstituíveis na manutenção do contato com as fontes interiores da inspiração e criatividade.

3 – O PODER DA PALAVRA
Não há que se identificar com o poder que confere o exercício da palavra. Não se pode nunca esquecer o apoio necessário e único no silêncio interior. O vazio e o silêncio são referências sempre presentes e que aproximam a arte de representar da religião. É a fé cênica que cria o magnetismo que possibilita que o ator como que hipnotize a plateia com sua atuação. É porque dentro de cada um dos espectadores existe essa mesma matéria inalcançável sem o despojamento mais completo que, como uma nudez, possibilita que o público se reconheça. Por compreender que não é exatamente ele quem realiza o milagre, o ator precisa ser humilde diante deste mistério, mas sem por isso deixar de desempenhar o papel de agente ativo no ritual.

4 – O ÊXTASE DA COMUNICAÇÃO (ESTAR DIANTE DO PÚBLICO E IDENTIFICAR-SE COM AQUELE ESTADO DE FORMA AUTOCENTRADA)
O ator não pode ser autoindulgente. Não pode acreditar no aplauso e no sucesso, e perder-se, assim, do caminho que o levou até lá. O aplauso, quando vem, confirma o acerto de suas escolhas, mas ele deve sempre lembrar-se da enorme humildade necessária para o acesso às fontes mais genuínas da inspiração. O esvaziamento interior necessário é insubstituível e não pode ser conferido por mestre nenhum e nem diretor nenhum. Ele mesmo precisa saber ser fiel à esse estado. Existe na representação uma espécie de loucura controlada, a exemplo do que fala Carlos Castaneda em seus livros sobre o caminho da iniciação do guerreiro. O ator é um guerreiro nesse sentido, por ousar abandonar sua identidade mundana, em troca do nada. O chamado que o leva a percorrer esse caminho é uma vocação.

5 – A IDENTIDADE SEM PLATEIA
Por outro lado, o ator não pode se viciar na necessidade de uma plateia para sentir-se vivo. Ao contrário, a própria arte de representar possibilita que ele, de forma alquímica, aprenda a prescindir do aplauso e da aprovação da plateia. Ele deve dedicar e oferecer seu trabalho ao Absoluto. Ele deve aprender a mergulhar e emergir do estado de consciência que lhe dá acesso à representação, sem desejar permanecer continuadamente no estado de inspiração que é catalisado pela plateia atenta que o assiste, seja ela o diretor (nos ensaios) ou o público propriamente dito.
Se resolve aprender, o ator tem de trabalhar duro, e os limites do aprendizado serão determinados pela amplidão de seus objetivos e por sua natureza. O medo é natural, não há nada que possa fazer a respeito. Por aterrador que seja o conhecimento, é mais terrível ainda pensar em um homem sem o conhecimento. E desde logo ele deve aprender a não projetar sobre outros, os seus possíveis problemas e dificuldades. Zangar-se com as pessoas significa que se considera os atos delas importantes. É necessário deixar de se sentir assim.
Em seu trabalho, o ator aprende a não se confundir com o outro, através da projeção e da introjeção. Tais possibilidades são próprias do corpo astral, da dimensão emocional que irmana todos os seres. Ela é matéria de seu trabalho, mas ele deve aprender a lidar com isso. Ele não deve nunca tentar fugir, jogando sobre outrem sua carga da culpa. O desafio é ser impecável como um guerreiro e trabalhar acima do bem e do mal. Para que não dependa de nada nem de ninguém, nem do diretor, nem da plateia, nem da Crítica. Se o faz, acaba presa das sombras do mundo externo, sujeito ao poder temporal e suas leis. As trevas exteriores são o diz-que-diz que pode vitimar o ator que despreparado tenta emancipar-se. Ele deve sim seguir a orientação de seu diretor ou mestre, mas com o objetivo de resgatar plenamente sua liberdade e autonomia, mas não referida a nada nem a ninguém. Para isso colabora a dramaturgia inerente a própria vida. Nenhum encontro nem nada por acaso, esta a maravilha de decifrar seus desdobramentos. No palco como na vida, cada um é responsável por si e, mesmo que não queira, condenado a conscientizar sua percepção do mundo.

6 – A ALMA DO ATOR
A alma de uma pessoa pode ser pensada como o centro de consciência a partir do qual o bom ator representa. Existe um estado de alerta, e um contato com fontes de sabedoria e intuição impossíveis de serem meramente verbalizados de forma intelectual. Trata-se de aprender que em cada um de nós existem inúmeros centros de consciência, e o mais perfeito é também aquele que exige o maior despojamento. A alma pode ser pensada e identificada com esse centro, que se integra a uma possível Alma Coletiva Impessoal, ou Inconsciente Coletivo.

7 – O PALCO ALÉM DA FESTA
Essa possibilidade de mergulho quase religioso é distinto daquilo que possibilita a arte meramente profissional, quando logo o ator recria uma persona pública para usufruir de seu sucesso e lucros. Claro que é possível que ele se detenha convenientemente a certa altura para atender apenas àquilo que pede o mercado e a profissão. Mas é uma pena e um desperdício que ele não ouse ir além.

8 – O PALCO ALÉM DA ORGIA
Aquele estado cênico além da mera identidade é, sim, um estado orgiástico e identificado de forma pessoal com ele. Existe a tentação do prazer possível naquele estado que não é menos que demoníaco. Porque se assemelha ao que se pode conseguir sob o efeito de drogas com um alargamento da consciência que é dirigida para o usufruto dos sentidos, sem dúvida logrando um prazer multiplicado à enésima potência.

9 – A RELAÇÃO DO ATOR COM O TODO A QUE PERTENCE
Uma das referências principais para o ator é sua relação com o diretor do espetáculo. Mesmo que não o seja, o diretor desempenha o papel de “mestre” já que é ele que coordena todo o trabalho. Claro que as relações com os companheiros de cena, os outros atores, é da maior importância e desde o início uma ética deve ser respeitada para que todos trabalhem sem colisões. Compreender também que a luz, o cenário, os figurinos, tudo que o cerca é importante para a projeção final do resultado de seu trabalho. Esse aprendizado na verdade só se completa quando algum dia ele chega a dirigir um espetáculo por ele mesmo, para poder compreender como cada elemento do trabalho é importante. Tudo isso o ajuda a compreender o mundo de ilusão que começa a adentrar e que o ajudará a decifrar as teias da ilusão na própria vida, conquista única e que nada pode pagar.

10 – PERSONA E PERSONAGEM. O TRABALHO DO ATOR
A presença onipresente da televisão e das novelas e a hegemonia do encenador, nas últimas décadas, no teatro brasileiro descaracterizou o estudo do ator para o palco. Há que se resgatar o caráter essencial de sua arte, que é distinta do naturalismo coloquial praticado na TV.
O método de Stanislawsky é básico, mas não se deve desprezar o reconhecimento dos talentos inatos do indivíduo. Existe, em cada um, uma facilidade maior ou menor para uma abordagem particular. As várias técnicas devem ser estudadas sem que se tornem uma prisão. Análogas a muitas das técnicas praticadas na Ioga, como a visualização e a concentração, elas são a tradução daquilo que o ator intuitivo pratica, quando assume um personagem. O intuitivo pega no ar a personagem. O ritmo e as palavras para os dotados de uma intuição musical fazem com que consigam fazer esse trabalho de forma completa sem um estudo detalhado de cada passo.
Muitos querem pular degraus sem tê-los experimentado. Afirmar que a “psicologia” não interessa, apesar de soar inteligente, disfarça a ignorância de quem afirma tal despropósito. A dramaturgia expressa na estrutura do texto é construída a partir da psicologia das personagens, seus mecanismos de ação e reação, e para decifrar corretamente os diálogos há que analisar minimamente o artesanato dos diálogos e suas características específicas.
O estudo da personagem compreende os mesmos vários matizes que envolvem uma criatura viva. Apesar de um engenheiro ser o técnico que calcula vigas e colunas de uma construção, por mais que o arquiteto seja o artista do projeto, o edifício não ficaria de pé sem os cálculos humildes do outro. Assim, formas tradicionais de ensaio não devem ser preteridas e deixadas à margem, de forma superficial. Em muitas escolas não se aprende o básico do trabalho do ator, que é analisar e estudar um texto, o que é necessário para extrair do texto seu maior rendimento.
Em cada cena, quanto maior a transformação vivida pela personagem, maior será a teatralidade explícita do espetáculo. Um texto pode ser ampliado com a compreensão do que é essencial. Isso depende de uma análise do texto com sabedoria, para definir vontade e contra vontade da personagem, que são os dois atributos que a estruturam. Quanto maior a transformação vivida pelos personagens, mais interessante e estimulante é a encenação.
A relação com coisas e pessoas reflete esta ação interior e se objetiva a partir dela. Mas o aprofundamento do personagem só pode existir a partir da investigação do que ele NÃO quer, de sua contra vontade. O estudo da contra vontade é ferramenta imprescindível para o aprofundamento porque é através dela que se consegue mergulhar no mundo interior da pessoa e descobrir suas contradições.
Uma verdade pouco falada é que a RELAÇÃO com o diretor e com os outros atores é fundamental. Nem sempre um fracasso no método de trabalho de um diretor implica em falta de talento. AFINIDADE com um caminho específico é importante, principalmente nos primeiros passos. Mas isso não significaria utilizar como desculpa uma possível falta de afinidade para não tentar realizar o que lhe for pedido.
A energia do olho e a ação interior. O exercício – olhar o desconhecido no outro.
A desobrigação de responder, o exercício de alternar falas de um com falas de outro, para que o ator se descondicione da facilidade de apoiar-se nas palavras do texto para evitar o mergulho necessário.

PALCO – Em cada rosto, um reflexo do seu, e mesmo com o susto, o espetáculo não para. Mesmo quem cala, continua a ser para o outro. Em cada retina sobrevive, à revelia, a falsa imagem de um ontem que se pretendeu deixar para trás.
Desembaraçar-se da memória que fixa um instante de fracasso ou de sucesso de forma errada, eternizando aquele instante e ocupando o espaço vazio que é o verdadeiro cadinho criador.
Aprender a permanentemente esvaziar-se, a cada passo, sem a pressa de atingir e conseguir o aplauso, é fundamental para o aprendizado.
Aprender a ser sujeito da criação, embora ela seja por natureza, coletiva, e a consideração de todos os fatores que o envolvem devam também ser considerados.
A precipitação em busca do aplauso é uma compulsão infantil, onde o ator coloca fora de si a referência, no caso em um diretor ou nos colegas, na fase de aprendizado.
A questão da identidade para o ator é central, porque ele irá trabalhar com inúmeros tipos de personalidade e desde logo é importante que aprenda a identificar-se com aquele ponto impessoal e sábio que toda pessoa traz dentro de si.
O que define um personagem é a RELAÇÃO com todos os outros. O ESTUDO destas relações deve preceder as escolhas no processo de criação para que o ator disponha de informações substanciais de diversas caras que o mesmo exibe no desenrolar da história.
Como se fosse outra língua, palavras escapam inúteis, aos ouvidos amigos, e criam mal entendidos. Mas todos se merecem. E o escândalo castiga com o eco de múltiplas vozes. O que salva é não ser real, o crime cometido – apenas palavras ditas no palco da relação.

PROJEÇÃO PARA ÚLTIMA FILA (A INTUIÇÃO CÊNICA)
Usar Luz no Caminho?
Existem muitos tipos de pessoas. Os emocionais, os intelectuais, e sistemas como a Astrologia servem para compreender o enorme número de tipos possíveis. O aprendizado do ator inclui necessariamente a descoberta daquele ponto neutro, no fundo de si mesmo, a partir do qual ele pode observar com equidistância todas essas possibilidades e identificar-se com elas, além do seu temperamento principal.