Peça infantil quer mostrar, no Sesc Consolação, de forma agradável, brincalhona, musical, mas incisiva, o quanto a aculturação dos povos originários afeta as famílias e ameaça a continuidade das tradições ancestrais de seus povos
Por Dib Carneiro Neto
Dalú, uma menina indígena do povo Sateré-Mawé, é levada a uma viagem para o mundo dos ancestrais a fim de retomar as riquezas de seu povo e ajudar a sua família a lidar com conflitos territoriais na cidade grande, para onde teve de ser mudar com a mãe. Esse é o mote principal do espetáculo infantil indígena Pa’ra – rio de memórias, com direção de Marina Esteves (a mesma do recente sucesso infantil Zebra Sem Nome) e dramaturgia de Idylla Silmarovi e Lenise Oliveira, essa última também em cena. Trata-se de um monólogo em que confluem as memórias de infância da atriz no Jurunas – uma das maiores periferias de Belém (PA) – com a cosmovisão de seu povo, os Sateré-Mawé. A temporada vai até 10 de maio no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, com sessões todos os sábados, às 11 horas.
Quando se mudou do Pará para São Paulo, em 2021, Lenise Oliveira precisou lidar com a discriminação social, a desvalorização dos seus saberes e um processo de “aculturação” forçada. Quis contar isso tudo no teatro, não só para as crianças urbanas, mas principalmente para as indígenas, residentes na cidade grande. “O espetáculo é um misto entrelaçado da visão do meu povo, minhas memórias de infância e os saberes de vários artistas que lidam com esse tema”, conta ela. “Tudo isso voltado para o olhar e a perspectiva das crianças.”

O assunto é muito sério e Lenise, encantada com a missão que tem em mãos, resume de forma clara e direta: “Desde o período colonial, sabemos que os povos originários foram sistematicamente marginalizados por políticas que buscavam muitas vezes forçar uma assimilação cultural e, assim, ocasionando a perda das línguas e das tradições. Isso então gerou um sistema educacional nacional, que não permite a diversidade cultural e também não aceita os saberes tradicionais. Há uma grande disparidade entre as escolas indígenas e as outras, principalmente no que diz respeito à infraestrutura, materiais didáticos, formação de professores… A distância dessas escolas dos grandes centros urbanos gera essa falta de recursos e dificulta o acesso à educação de qualidade.”
A importância de valorizar territórios
Lenise se faz várias perguntas e quer que elas gerem reflexão a partir do espetáculo: “Como preservar a língua e a tradição de um povo, para além da catalogação, se não houver falantes e ouvintes? A educação dessas crianças indígenas precisa ser bilíngue, para gerar a necessária compreensão do contexto em que ela vive. A preservação cultural é um direito inalienável dos povos indígenas. Garantir que as novas gerações tenham acesso ao conhecimento tradicional é crucial para a sobrevivência dessas culturas. Como produzir uma identidade cultural forte sem manter práticas como rituais, festivais, cultura agrícola, medicina tradicional. Isso tudo está diretamente ligado a território. E é a partir de onde a gente vive que observamos a vida. Território é produção de conhecimento. Palavra é ação, é vida, é comportamento.”
Mas de que forma esses assuntos aparecem na dramaturgia do espetáculo, tornando-o ao mesmo tempo agradável e incisivo? Lenise responde prontamente: “A personagem-criança que eu faço está narrando o tempo todo a própria história e as suas lembranças de situações do cotidiano, muitas vividas na escola e outras impostas pelo sistema capitalista de Belém, do Pará, e de São Paulo, para onde ela tem de se mudar com a mãe. Ao navegar nesse rio de memórias, ela vai encontrar seres espirituais, gerando uma espécie de ecossistema cênico, pulsante e vivo. Durante o espetáculo, essa criança questiona o que de fato é riqueza. Será que é aquilo que você pode tocar ou aquilo que você já traz consigo? Nessa ‘brincadeira’ toda, isso vai ser movido na peça pela sonoridade paraense, como brega, tecno brega, tecno melody, guitarradas”.

A lucidez da atriz e dramaturga para falar de seu sonho de espetáculo é comovente e isso, com certeza, vai transparecer em cada cena. “Para mim, é uma alegria poder proporcionar para as crianças indígenas de São Paulo uma figura na qual elas finalmente vão poder se reconhecer”, exulta. “E despertar no imaginário das crianças não indígenas o desejo de ouvir histórias diferentes da sua. Sinto como se a peça fosse um convite para repensar identidades e resgatar memórias, que, ainda que adormecidas, estão sempre presentes no corpo e na alma. Diante de tantos enfrentamentos e do choque cultural que eu tive vindo para São Paulo, eu percebi que realizar esse trabalho é um movimento ancestral, porque a ancestralidade ensina que o sentido da vida é o coletivo. Assim, a confluência desses saberes traz para o teatro um espetáculo rico, uma riqueza imaterial, não palpável, por ser uma experiência única.”
Com a palavra, a diretora
A diretora Marina Esteves não hesitou em aceitar o convite e divide com Lenise essa ideia da força da confluência de saberes. Ela declara: “O que me interessou em dirigir este espetáculo foi prosseguir na pesquisa sobre as representações de gênero e raça em cena, desta vez com confluência afro-indígena, já que sou diretora negra e a atriz e idealizadora é indígena.”
E, por falar em lucidez ao descrever propósitos, Marina também demonstra segurança e empolgação em seu discurso. Ela conta que a linguagem principal do espetáculo é o uso de objetos de formas inusitadas: “Eu trabalho com uma pesquisa voltada para o poder político da imaginação. Imaginar um devir melhor para o mundo e poder enxergar novos horizontes são poderes políticos. Brincar e imaginar unem todas as crianças. São poderes que toda criança tem, independentemente de origem, classe social, raça ou gênero. Nesse sentido, ressignificar objetos, transformando-os em algo lúdico e mágico, foi uma escolha adequada de linguagem para o espetáculo. Aqui, optamos pelos bancos de pajés, que, na cultura indígena, são objetos sagrados e que dizem respeito à continuidade de saberes dos ancestrais. Transformamos esses bancos em cidade, em caminho de igarapé no rio, e assim por diante. Um objeto sagrado, nas mãos de uma criança, virando brincadeiras”.
E como foi para ela dirigir um monólogo para crianças? A resposta: “Olha, recentemente dirigi meu próprio monólogo, ‘Magnólia’, que estreou no ano passado. Acredito muito no poder da narrativa em cena e como o próprio corpo de intérprete pode contar uma boa história. O que eu disse sempre para a Lenise, durante os ensaios, foi que ela se conectasse o tempo todo com a sua criança, com o estado presente, como um adulto presentificado brincando, sem querer se preocupar em ‘fazer’ uma criança. Manter em cena um estado 100% de brincadeira permite uma conexão direta e imediata com a verdade da criança e sua essência”.
Serviço
Pa’ra – rio de memórias
Sesc Consolação – Teatro Anchieta. Rua Dr. Vila Nova, 245. Telefone: (11) 3234-3000
Sábados, 11h. Sessão extra no dia 1/5. R$ 40
Até 10 de maio (estreia 15 de março)