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“O Incidente” provoca a plateia com discussão sobre o racismo estrutural da sociedade

Sinopse

Peça de Christopher Demos-Brown, lançada na Broadway em 2016, ganha montagem no Teatro Vivo dirigida por Tadeu Aguiar e protagonizada por Flavia Santana

Por Dirceu Alves Jr.

Em uma conversa informal com um amigo ator, lá pelos idos de 2015, o diretor e produtor Tadeu Aguiar, hoje com 63 anos, tomou um choque que o fez a rever seus métodos de trabalho. “Não adianta nem perguntar se existe algum papel para mim em seu próximo projeto porque nas suas peças nunca têm pretos”, provocou o colega.

Refeito do susto, a primeira decisão de Aguiar foi adaptar seu espetáculo em fase de concepção, Love Story, O Musical, versão do clássico romântico do cinema, para um elenco totalmente formado por pretos. Na sequência, o musical A Cor Púrpura (2019), se aprofundou na temática racial e no empoderamento feminino, e o diretor reconhece que, felizmente, acordou para um caminho sem volta. “Olhei para trás, vi que o meu amigo tinha total razão e comecei a fazer, pelo menos, a minha parte nesse longo processo de reparação histórica”, assume.

Com O Incidente – American Son, peça do dramaturgo americano Christopher Demos-Brown, que chegou em 4 de agosto ao Teatro Vivo, Aguiar sai do terreno musical e se concentra na discussão dramática do racismo em 106 páginas de muito texto falado por quatro intérpretes. São eles Flavia Santana, Leonardo Franco, Daniel Villas e Marcelo Dog. “É uma história ambientada nos Estados Unidos, mas que poderiam acontecer – e acontece – no Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outro lugar até porque o racismo está por onde andamos”, define o diretor.

Marcelo Dog, Leonardo Franco, Flavia Santana e Daniel Villas em O Incidente. Foto Carlos Costa

No centro da trama, uma mulher preta (papel de Flavia), professora universitária, vai até uma delegacia em busca de notícias do filho de 18 anos, que teria se envolvido em um “incidente” durante uma ação policial. O oficial de plantão (vivido por Villas) dá pouca atenção à angústia materna e quando lhe dirige a palavra reforça o preconceito mesmo sem perceber. A chegada do pai do garoto (representado por Franco), que é branco, sublinha a diferença no tratamento e diversas informações sobre o caso começam a vir à tona, algumas delas trazidas pelo tenente-chefe (o ator Marcelo Dog), também preto.

Pandemia

Em um avanço da sua parte nesta “reparação histórica”, Aguiar entendeu que não basta apenas oferecer bons personagens para atores pretos e chamou Flavia para uma sociedade como coprodutora do espetáculo. Nenhuma empresa se interessou em associar sua marca ao projeto, e os dois levantaram a montagem sem qualquer patrocinador.

Saídos do trauma da pandemia e loucos para levar a história ao palco, Aguiar levantou algum dinheiro como conseguiu e Flavia mexeu em boa parte da poupança que faz para dar entrada em um apartamento. “Queria transformar essa economia guardada em algo benéfico para mim e para o futuro do meu filho”, declara a atriz. Com os direitos autorais do texto comprados, a montagem foi levantada e estreou em janeiro no Teatro Firjan Sesi, no centro do Rio. “Agora, eu posso dizer que sou uma mulher preta sócia de uma franquia de peça da Broadway muito potente levada aos palcos brasileiros.”

Flavia, de 46 anos, fluminense de Belford Roxo que passou a infância no bairro carioca de Guadalupe, entendeu desde cedo que só chegaria a algum lugar se ela mesma se impusesse os próprios desafios. Atriz e cantora, foi vocalista das bandas de Alcione, Fernanda Abreu e Sandra de Sá e consolidou talento no ascendente mercado do teatro musical na década de 2010. A artista participou de, entre outros espetáculos, Era no Tempo do Rei, Tim Maia – Vale Tudo, Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba, Bibi – Uma Vida em Musical e A Cor Púrpura, os dois últimos comandados por Aguiar.

George Floyd

Com tamanha experiência, a atriz tinha plena consciência de que dava conta ao soltar a voz, mas sabia que precisava dar a cara a tapa para ser respeitada como intérprete e protagonizar um texto dramático – uma oportunidade que só chegou em O Incidente – American Son. “Quando o Tadeu me fez ver a filmagem dessa peça na Netflix, fiquei enlouquecida e, na sequência, vieram dois socos no estômago, os assassinatos de George Floyd nos Estados Unidos e de um homem preto em um supermercado de Porto Alegre”, diz ela. “Não dava mais, sei que a formação da sociedade brasileira até hoje é colonial, mas quero deixar um mundo diferente para meus netos em que eles não precisem reforçar qualquer conquista para serem respeitados.”

Cena da peça O Incidente. Foto Carlos Costa

A atriz conta que seu filho, Renner, de 14 anos, foi abordado semanas atrás por um segurança da loja de um shopping perto de sua casa, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. O sangue subiu à cabeça, e ela foi lá tomar satisfações com o gerente. O pedido de desculpas protocolar não aliviou o inconformismo da mãe. A artista, porém, voltou a estudar o texto para a temporada paulistana com muito mais sangue nos olhos e certa da função de que cabe a ela uma parte no convencimento da plateia em abraçar a sua parte nessa transformação social.

“O que me bate nesta personagem é enxergar tudo o que ela deve ter passado na adolescência e, assim como eu, não quer que se repita com o filho”, declara a protagonista. “E posso dizer isso de cadeira porque tenho lugar de fala: ‘o racismo não vai acabar nunca porque é uma questão caráter e sempre vai existir o mau-caráter, só que precisamos nos posicionar para que essa mentalidade seja derrubada.”   

O Incidente – American Son

Teatro Vivo. Avenida Chucri Zaidan, 2460, Morumbi.

Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 120,00. Até 27 de agosto.

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Ficha Técnica

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Serviço

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