Atriz de 95 anos é a protagonista de “A Mulher da Van”, que trata de relações humanas, tolerância e etarismo
Por Ubiratan Brasil
Aos 95 anos, a atriz Nathalia Timberg ainda justifica a observação feita, nos anos 1960, por Décio de Almeida Prado, um dos principais críticos da história do teatro brasileiro: “Nathalia Timberg confirma a sua grande classe de intérprete: é a atriz mais europeia que possuímos, no sentido de dar uma impressão de escola, de técnica, de refinamento. Sabe como andar, como gesticular, como usar um vestido de gala – mas não fica nestas qualidades de mulher da sociedade. É engraçada, mordaz, quando o deseja, e, nas últimas cenas (Décio se referia ao espetáculo ‘Meu Querido Mentiroso’), sem recorrer a mudanças demasiadamente marcadas de voz ou de gestos, deixa transparecer com sutileza e emoção todo o desgaste físico da velhice”.
Se há quem duvide, basta vê-la em cena na peça A Mulher da Van, que inicia temporada no dia 16, no Sesc Pinheiros. Escrita pelo inglês Alan Bennett, que se inspirou em um fato real, e com direção de Ricardo Grasson, a peça trata de temas atuais, como as complexas relações humanas, a tolerância e o etarismo.
Nathalia vive Mary Shepherd, uma senhora inglesa acumuladora que, na década de 1970, morava dentro de uma van e sempre estacionava o veículo no bairro de Camden Town, em Londres, variando as ruas e as residências. E, por conta de seus hábitos poucos sociáveis, quase todos os vizinhos eram hostis com ela.
Somente uma pessoa era simpática a ela: escritor Alan Bennett, que permite que a idosa use o banheiro dele de vez em quando. Logo, os moradores conseguem que a prefeitura proíba que qualquer carro fique estacionado permanentemente no bairro, obrigando a sra. Shepherd a sair da região. Revoltado com a situação, Alan deixa que ela estacione na sua garagem.
“Paralelamente a essa história, a peça conta que o escritor, apesar de ter uma relação muito boa com a própria mãe idosa, que morava em outra cidade, precisou interná-la em uma casa de repouso, pois não tinha como cuidar dela”, explica Grasson. “É muito interessante, pois o texto fala um pouco sobre essas relações humanas e do cuidado que, às vezes, não conseguimos ter com uma pessoa da própria família, mas acabamos tendo por um desconhecido. Mas acho que também estamos fazendo esse bem para o mundo, sabe?”
O diretor lembra que a ideia de montar o espetáculo é um sonho antigo da atriz. “A Nathalia tem esse texto há mais de 15 anos e, quando nós fazíamos a peça 33 Variações, em 2016, ela me contou sobre a vontade de montá-la. Com pandemia de covid-19, ela ficou cinco anos longe do palco e, então, me ligou dizendo que gostaria de finalmente retomar o projeto – possivelmente seu último trabalho”, revela o diretor.
Sobre a encenação, o diretor revela que não tentou atualizar o texto para os nossos dias, mas procurou fazer um paralelo com o realismo fantástico, seu trabalho de pesquisa. “Toda a encenação, a parte plástica do espetáculo, tem a influência dessa estética, que é muito mais comumente vista na literatura e no cinema. E o realismo fantástico nada mais é do que o realismo distorcido, que é um pouco como a nossa vida”, acrescenta.
A tradução da peça é assinada por Clara Carvalho. E o elenco se completa com Caco Ciocler, Eduardo Silva, Duda Mamberti, Roberto Arduin, Lilian Blanc, Noemi Marinho e Cléo de Páris. “Todos são atores de transfiguração, de composição, porque têm muita facilidade de se transformar no próprio personagem, mudando o jeito de andar, de falar, a voz, o corpo e até as expressões. Esse tipo de ator é muito raro e, na montagem, eu tenho certeza de que formamos um time muito poderoso”, comenta o diretor.
À frente, Nathalia Timberg traz sua segurança que vem de uma carreira sólida de quase 90 anos. Ela começou cedo, aos 6 anos, no filme O Grito da Mocidade. Em 1940, fez teatro infantil com Olavo de Barros, e, em 1945, estreia como amadora, no Teatro Universitário, ao lado da Nicette Bruno. Sua carreira profissional começou nos anos 1950. Foi convidada para fazer um curso de atuação na França e quando voltou ao Brasil, passou a fazer parte da Companhia Dramática Nacional. Em 1954, participa da montagem de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues.
Nathalia participou da montagem de textos clássicos contemporâneos, desde os franceses Marguerite Duras e Sartre aos americanos Arthur Miller e Eugene O’Neill. Encenou também trabalhos de dramaturgos nacionais, como Dias Gomes (participou da célebre encenação de O Pagador de Promessas, com direção de Flávio Rangel, no TBC, em 1960). Um currículo respeitável e construído a partir de uma máxima que até hoje direciona seus passos artísticos: “Todo teatro é espetáculo, mas nem todo espetáculo é teatro”.
Serviço
A Mulher da Van
Sesc Pinheiros – Teatro Paulo Autran. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros
Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h. R$ 70
Até 15 de setembro