Na programação, o grupo paulistano, responsável por grandes sucessos do teatro para crianças, como “Pés Descalços” e “Berenices”, revela também sua pouco conhecida faceta de teatro de bonecos para adultos
Por Dib Carneiro Neto
Se você, até hoje, ainda não imagina o que é se emocionar em um espetáculo de bonecos, não sabe o que está perdendo. E sua chance chegou. Escolha qualquer um dos espetáculos da incrível Mostra Morpheus Teatro 21 anos, de 7 a 30 de junho, totalmente grátis, no Teatro Cacilda Becker, na Lapa paulistana. Impossível não se emocionar com os trabalhos desta trupe resiliente, capitaneada por João Araújo e Verônica Gerchman, artistas de primeira grandeza do universo do teatro de animação brasileiro.
Em Pés Descalços, por exemplo, que abre a mostra neste sábado (7), a tocante amizade, dentro de um tanque de areia, entre uma menina sapeca e um menino retraído. Em Berenices, garota descobre suas múltiplas faces e sentimentos diante da notícia de que vai ganhar um irmão. E, para quem só associa bonecos a crianças, a Morpheus mostra duas peças para público adulto, Pequenas Coisas e O Princípio do Espanto. E mais: a programação ainda conta com a intervenção Intervalos, na qual os artistas dialogam com o público no foyer do teatro antes de cada apresentação, usando a linguagem do teatro de máscaras expressivas. E, no mesmo espaço, poderemos conferir uma exposição com fotos de ensaios e dos processos de construção e confecção dos bonecos e máscaras usados nos trabalhos da companhia.
Nesta conversa exclusiva do Canal Teatro MF com Verônica Gerchman, você vai entender como uma companhia sobrevive no Brasil por 21 anos seguidos. A seguir:
O que de fato significa, no Brasil, uma companhia de teatro (e de bonecos, e para crianças) completar 21 anos de trajetória?
Ser um grupo estável no nosso país e com um caminho ao longo dos anos é admirável. Acho que tem muito a ver com resistência e resiliência. E particularmente nos últimos anos, porque tivemos governos avessos à cultura e situações dramáticas como a pandemia e o seu pós. Acho que todos os profissionais ligados às artes cênicas viveram momentos de morte. Celebrar a mostra 21 anos do Morpheus Teatro é uma lufada de vida. Como uma primavera depois de um longo inverno. Mas é interessante dizer que o grupo Morpheus Teatro, quando iniciou sua trajetória, fazia seus espetáculos voltados para o público adulto. Algo que é comum no exterior, principalmente na Europa. Aqui no Brasil, víamos essa prática ter uma maior adesão nos festivais de teatro de animação, que traziam a arte do teatro de animação destinado aos adultos.
Então, quando as crianças entraram na jogada?
Na verdade, a temática para as crianças veio comigo, quando comecei a trabalhar no Morpheus Teatro em 2008. Eu fui diminuindo minhas atividades na Cia Truks, até que me aposentei por lá, ficando como uma integrante afetiva e, por vezes, cobrindo alguém que porventura adoecesse.
O universo infantil, que sempre esteve comigo e que foi minha escola, eu acabei trazendo para o Morpheus. Mas mesmo assim, o primeiro espetáculo que fiz com o João Araújo foi um adulto, que está nessa mostra. Ele se chama Pequenas Coisas. No ano seguinte ganhamos o Prêmio Myriam Muniz e montamos o nosso primeiro infantil, Pés Descalços.
E o que de fato significa conseguir celebrar com uma mostra de repertório, durante um mês, em um teatro público?
Na verdade, antes de mais nada, é importante falar do Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo. As políticas culturais são fundamentais para o cenário artístico de uma cidade. E são fundamentais para um grupo estável. Não poderíamos realizar essa mostra de repertório sem o Prêmio Zé Renato. Aliás, no folder da Mostra, temos um lugar de agradecimentos, e lá tem uma frase que diz: “E ao Prêmio Zé Renato, da Secretaria Municipal de Cultura, que impediu a extinção de nosso grupo mais de uma vez.” Um prêmio como esse nos permite idealizar um projeto que faça chegar o nosso repertório a bairros afastados do centro da cidade, sem cobrança de ingresso, ou como quando recebemos o mesmo prêmio para a circulação do espetáculo Berenices e veio a pandemia e fizemos on-line. O grupo, se não tivesse o aporte do prêmio, não teria entrada nenhuma para viver aquele momento trágico que foi a pandemia. E agora esse prêmio nos permite apresentar o repertório do grupo nesta mostra comemorativa e oferecer em um teatro público sem cobrança de ingresso, fazendo valer o imposto revertido para o bem cultural. Nos permite apresentar as obras que foram criadas para o público adulto e que não apresentamos tanto, pois as pessoas associam teatro de bonecos ao universo infantil, e acabam por não assistir essas obras. Para nós é uma alegria imensa em nosso coração.
Qual é o barato de se fazer peças sem palavras? Comente um pouco sobre esse incrível desafio.
A linguagem do teatro de bonecos e da máscara casam bem com a ausência da fala. O gesto, as partituras de ações do corpo do boneco ou do ator com a máscara inteira traduzem o texto interno daqueles personagens. E surgem algumas riquezas a partir do encontro do espectador e da obra sem texto. Aquele que assiste a obra é mais livre no seu imaginário, pois não há um texto fechado. Costumamos dizer que uma boa dramaturgia oferece um signo e o espectador complementa aquilo que lhe é entregue. Como a imagem de um Iceberg… entregamos uma parte pequena visível e o espectador imagina tudo o que está submerso. É interessante observar que quando criamos um espetáculo, colocamos nele questões que nos atravessam, que nos emocionam. Procuramos expressar de forma mais clara possível essa carga anímica, mas quando a obra encontra o mundo da pessoa que a vê, ela ganha leituras, percepções que às vezes nenhum de nós criadores atinou. A ausência de texto dilata mais ainda a quantidade de possibilidades a serem criadas. Além de não possuir barreiras em relação ao idioma e ou nacionalidade. O gesto é universal.
Em 21 anos, você e seu grupo enfrentaram muitas agruras, mas também conquistaram muita felicidade. Qual o saldo? Há esperança?
Realmente trabalhar com teatro no Brasil é uma aventura, e sim são muitos os desafios e dificuldades que nos deparamos ao longo da caminhada. Acho difícil falar de saldo. João Araújo escreveu um texto bonito sobre essa celebração, e tem um trecho que, para mim, tem a alma desta mostra, do nosso ofício e principalmente do João, que criou o grupo Morpheus teatro. Ele é um artista que busca constantemente o refinamento, que valoriza o trabalho feito e que quando carregamos o carro com os equipamentos e cenário nos diz: Turma, o espetáculo já começou! Segue parte do texto de João da Silva Araujo no folder da mostra: “Como resumir a vida de uma pessoa? Ou a vida de um grupo de teatro? No meu entendimento a nossa história não foi feita de grandes sucessos, estreias inesquecíveis ou temporadas esgotadas, mas do trabalho do dia a dia, dos embates de ideias, da luta para aprender e se aperfeiçoar naquilo que poucos acreditam ser um ofício. Do árduo trabalho de errar, errar e se permitir continuar errando, até se entregar àquele brincar que nos movia na infância. Esta mostra é uma homenagem aos parceiros dessa jornada, às milhares de horas de ensaios, às centenas de viagens, montagens, aos técnicos de teatro, programadores culturais, professores e artistas que tanto nos ensinaram com seus trabalhos. A você que veio criar junto esse encontro! E ao desejo de tentar um teatro possível, que nos mova a experimentar e ver como seria além da nossa imaginação”. Quanto à esperança, penso que não dá para ser um artista, sem levar consigo a esperança. Eu não consigo. (risos)
Fale um pouco sobre as sensações que você, pessoalmente, tem ao dar vida a um boneco no palco à vista de plateias tão diversificadas.
Quem trabalha com a arte de dar vida a algo inanimado comunga de experimentar aspectos “mágicos” do mundo do sensível. Vive o assombro de dar vida àquele ser feito de madeira, espuma , látex, pano , emprestar por vezes sua própria voz àquele personagem, e mesmo assim se “espantar” porque ele agiu de determinada forma. Tamanha a vida doada. Na Truks costumávamos dizer que nesses momentos o “anjo passava”. Mas também o contrário é sentido intensamente, quando movemos mecanicamente aquele ser, e percebemos que nada acontece. Ou seja: muita vida, muita presença ou muita ausência. Mas, com o público, compartilhamos um lugar em comum. Essa capacidade atávica de dar vida. Dizem que essa capacidade vem desde que vivíamos em cavernas e perto do fogo e nossas sombras eram projetadas nas paredes, e intencionalmente nós as animávamos. Ou se não quisermos ir tão longe no tempo, a nossa relação lúdica e imaginativa na infância, onde pegávamos um lápis e transformávamos ele em um foguete. Mas pra mim, o que mais me emociona, é a capacidade de tocar o coração dos outros com tantos sentimentos, facilitados por essas queridas criaturas que nos acompanham. Em uma comunicação direta e sensível. Parece que o boneco, a máscara cria entre nós atores e o público um espaço intermediário, onde fica mais acessível a comunicação. Falar ou ouvir algo através da criatura é menos invasivo, mesmo às vezes sendo muito mais direto e claro. Essa potência de comunicação com o público sempre me comoveu, desde menina. Como público e depois como atriz.
Serviço
Mostra Morpheus Teatro 21 Anos
Grupo Morpheus Teatro
Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295, Lapa
Pés Descalços: de 8 a 16 de junho, aos sábados e domingos, às 16h.
Pequenas Coisas: 7 a 16 de junho, às sextas e sábados, às 21h, e aos domingos, às 19h
Berenices: 22 a 30 de junho, aos sábados e aos domingos, às 16h
O Princípio do Espanto: 21 a 30 de junho, às sextas e aos sábados, às 21h e aos domingos, às 19h
Ingressos: Grátis, distribuídos uma hora antes de cada sessão
De 7 a 30 de junho