Novo espetáculo do grupo Tablado SP recorre à figura dos jagunços em meio ao confronto de artistas esquerdistas e elite do agronegócio
Por Dirceu Alves Jr.
Criado em 2001, o grupo Tablado de Arruar saltou das apresentações em espaços abertos para uma pesquisa sobre o teatro político que só fazia sentido se encenada na relativa claustrofobia das salas fechadas. Na década de 2010, por exemplo, o espetáculo Mateus, 10 debateu a fé e alienação através de um pastor e a trilogia Abnegação ofereceu um consistente painel da esquerda a partir da ascensão e derrocada do Partido dos Trabalhadores no poder.
Na estreia de Verdade, que dramatizava a Comissão da Verdade instituída pela presidente Dilma Rousseff e a revanche dos militares, o grupo já se identificava como Tablado SP. Era 2022, e a companhia sentia os efeitos do tempo com a saída de vários integrantes. Da turma original, só permaneciam Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano, e o nome se perdeu diante das propostas vigentes há, pelo menos, 10 anos – “arruar” significa “passear”, “perambular”.

Como parte dessa progressiva revisão, o Tablado SP coloca no palco o espetáculo Magma-Jagunço, que estreia nesta quinta, 30, no Tusp Maria Antônia, com o ator e diretor Clayton Mariano alçado ao título de dramaturgo principal. O posto até então era ocupado essencialmente por Alexandre Dal Farra, que respondeu por Mateus, 10, a trilogia Abnegação e Verdade, entre outros, mesmo que o processo colaborativo sempre tenha se consumado entre todos os integrantes.
Mariano, de 46 anos, antes do teatro, vem de uma formação de letras e literatura, escreveu para audiovisual e publicidade e suas experiências em dramaturgia para os palcos eram restritas às adaptações literárias. “Dentro do grupo, o Alexandre sempre escreveu melhor que eu e a gente preferiu ter um dramaturgo mais consistente”, justifica ele, que assina pela primeira vez um texto autoral. “Até que nós dois decidimos criar peças paralelas, a minha, que é Magma-Jagunço, e a dele, chamada de Serra Pelada, e, mesmo dentro do grupo, cada um tocou seu projeto.”
Magma-Jagunço recorre à extrema direita e ao agronegócio para abordar conflitos da história recente do país. Para isso, Mariano pesquisou e analisou o que significa a origem e a mentalidade dos jagunços dentro do Brasil profundo, fonte constante de inspiração para a literatura e o cinema. “Não queria explorar a indústria cultural que vende a imagem do caubói, mas entender por que os militares são tão objetivos, mantém uma ação constante, enquanto essa extrema direita é passional e sempre aparece analisada de uma forma simplista, vista como um bando de malucos”, observa.

Para o autor e diretor, o jagunço de hoje é representado tanto pelos capangas a serviço de latifundiários quanto por pastores, pequenos proprietários, policiais, milicianos e qualquer outro que se impõe à força para garantir a ordem e o poder “Minha ideia é entender como vira a chave destas pessoas, porque, se você procurar, tem um jagunço a cada esquina e todos conservam uma espécie de lógica, guiada por uma fé quase psicótica.”
Na trama, um trio de cineastas de esquerda (interpretado por Bruna Betito, Rafael Lozano e Vinícius Meloni) invade as terras de um grande empresário brasileiro (o ator André Capuano), tio de um deles, para rodar um filme sobre os crimes ocorridos na propriedade. Em uma alegoria a Joesley Batista, o fazendeiro é dono de uma das maiores indústria de carnes do país, enquanto sua mulher (papel de Maria Tendlau) aparece como uma provável ex-petista que firmou alianças discutíveis e vive uma crise no casamento.
O ponto de virada criativo da montagem é colocar essa dramaturgia no palco sob dois pontos de vistas diferentes, ou melhor, no formato de dois filmes. Jagunço, o primeiro filme dentro da peça, traz a ótica dos cineastas. Magma, o segundo, revela as entranhas do agronegócio de acordo com o olhar da elite. Em uma alusão aos longas Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha (1939-1981), o ator Rodolfo Amorim interpreta Antônio das Mortes, o cangaceiro-símbolo no imaginário popular representado nas telas pelo ator Maurício do Valle (1928-1994). “No primeiro filme, Rodolfo é só um jagunço que a esquerda acredita poder transformá-lo em aliado, enquanto no segundo, ele é o capanga que toma o lugar do patrão”, explica Mariano.
Dá para imaginar Magma-Jagunço como um espetáculo ambicioso e movido por pretensões estéticas radicais. É teatro, claro, mas recorre a filmagens ao vivo, cenas pré-gravadas e uma cenografia complexa. Como diretor experiente e dramaturgo estreante, Mariano estranhou a solidão da escrita e admite que transitou entre o céu e o inferno durante o processo que ainda não considera encerrado. “Mas eu gosto desse jeito e precisamos enfrentar mais o risco, afinal não somos cirurgiões, que se algo der errado podemos matar uma pessoa”, provoca. “Ao contrário dos demais trabalhos do grupo, tão objetivos, quase informativos, essa peça se refugia na poesia, é um transe sertanejo, algo mais vertiginoso.”
Consciente da corda-bamba, Mariano confessa a satisfação com o resultado das cenas vistas isoladamente, mas, mesmo três dias antes da estreia, ainda não realizou o chamado “corridão”, uma espécie de ensaio em que a peça é apresentada na íntegra e sem interrupção para ajustes. “Eu digo que, como comidas isoladas, o sabor está uma delícia, mas tudo junto pode dar um gosto duvidoso porque são muitos assuntos e linguagens envolvidas”, brinca, preparando o espectador para a ousada proposta.
Serviço
Magma-Jagunço.
Tusp Maria Antônia. Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque.
Quinta a sábado, 20h; domingo, 18h. Grátis. Ingressos distribuídos uma hora antes.
Até 23 de fevereiro (estreia 30 de janeiro)