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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

Lavínia Pannunzio reencontra Elizabeth Costello depois de se reconhecer como a própria personagem

Sinopse

Atriz volta em cartaz com o solo adaptado do livro de J. M. Coetzee e fala do trauma gerado pela interrupção do trabalho na pandemia

Por Dirceu Alves Jr.

A atriz Lavínia Pannunzio, de 57 anos, tem uma amiga taróloga, Letícia Teixeira. Encantada com o romance Elizabeth Costello, do escritor sul-africano J. M. Coetzee, a artista decidiu empreender um longo processo para levá-lo aos palcos. “Eu quero ser essa mulher”, pensou, ainda em 2016, fascinada pela personagem, uma espécie de alter ego de Coetzee. “Ela trata da falência civilizatória, do nazismo, do capitalismo, do pensamento judaico cristão e chega um momento em que Costello se isola com um monte de gatos, acha que não vale a pena viver nessa sociedade.”

Em uma consulta, diante das cartas do tarô, Letícia olhou para a atriz e ponderou: “Parece que você estreia mesmo, mas vai ser pouco e não tão bom, não vejo uma peça contínua, porque vai fazer, parar e, depois, você volta, faz mais um pouco e para de novo”. Lavínia achou uma loucura aquela conversa e decidiu seguir em frente, apoiada na intuição. Encontrou no ator Leonardo Ventura, com que dividia a cena no espetáculo Boca de Ouro, a parceria certa para criar uma dramaturgia e conceber a direção de Elizabeth Costello, que, depois de dois anos de labuta intensa, estreou em 22 de janeiro de 2020 no Tusp, em São Paulo.

A temporada começou a esquentar, os elogios apareceram aos montes e Lavínia alcançou um belo momento nos palcos. A dramaturgia de Ventura colocou a intérprete recebendo o público como ela mesma na porta do teatro para, aos poucos, se transformar em Elizabeth Costello, uma mulher de 80 anos, que, diante de um gravador, registra suas memórias e, em seguida, as converte em ficção. Na trama, ela precisa convencer um suposto tribunal – no caso, a plateia – sobre suas crenças e valores para, enfim, cruzar um portão, talvez a simbologia para a transição à morte.

Lavínia Pannunzio em cena da peça Elizabeth Costello. Foto João Maria

“Quando li o livro, pensei que aquilo não dava teatro de jeito nenhum, mas não desisti, pedi para Lavínia ler e reler inúmeras vezes para mim”, conta Ventura, com a experiência de quem trabalhou cinco anos com o ator Cacá Carvalho na Casa Laboratório e outros quatro com o diretor Antunes Filho no CPT. “A descoberta destas Costellos tão diferentes foi o que cristalizou uma ideia de ação e funcionou como tradução nossa para a obra.”

No dia 15 de março, veio a pandemia do coronavírus, os teatros fecharam e, junto com o mundo, Lavínia paralisou, desistiu até do seu ofício. “Parece que a quinta-feira, dia 7 de setembro, quando reestreamos, foi a primeira quinta-feira depois da interrupção daquela temporada no Tusp”, diz. A taróloga tinha razão. Elizabeth Costello entrou em cartaz, parou, virou um trauma e, agora, volta por pouco tempo. As sessões, no Espaço Mezanino da Fiesp, com entrada franca, seguem apenas até 1º de outubro, de quintas a domingos, e param de novo. “Eu não tenho saudade do que fazia lá porque agora está muito melhor, atravessei literalmente um portal e trago outra compreensão da personagem”, afirma a protagonista do solo. “E, como Costello está envelhecendo e eu também, vou interpretá-la por muitos anos, já me imagino bem velha, com os peitos muito caídos em cena.”      

Furacão

Ventura define Lavínia como um furacão nesta retomada. “É uma mulher sendo julgada, uma mulher com 50 e tantos anos que se despe diante dos espectadores para falar do moralismo da nossa história ocidental”, justifica. Os ensaios foram rapidíssimos, não mais de quinze dias, para recuperar o corpo, relembrar o texto, abrir espaço novamente para aquilo tudo que ficou guardado. A atriz vinha de uma semana de descanso em Alter do Chão, no Pará, e voltou pronta para enterrar de vez os bloqueios que, não nega, criou dentro de si. 

Durante a pandemia e o governo bolsonarista, Lavínia se enxergou em Costello, adotando a mesma ausência do mundo praticada pela personagem. “Eu não tinha o que dizer no teatro como atriz, então quis ficar um pouco mais perto da humanidade e fui me encontrando como diretora”, assume. A intérprete em recesso comandou as encenações de Névoa, peça de Michael Perlman, e Zoológico de Vidro, clássico de Tennessee Williams. “Ali, eu tinha pensamento crítico, artístico, a minha libido acendia, mas não se prolongava”, reconhece.

A virada de chave veio no fim de 2022, preenchendo um formulário que pedia a indicação de sua profissão. Ela tascou atriz e se incomodou com a inatividade. “Se é essa a minha profissão, ora, é isso o que eu tenho que fazer”, pensou e começou a cruzar o seu próprio portal. Em março e abril, sob a direção de Guilherme Leme Garcia, interpretou a Rainha Gertrudes em O Dia das Mortes na História de Hamlet e, comandada por Cesar Ribeiro, atravessou julho em Dias Felizes, de Samuel Beckett, contracenando com Helio Cicero. “Eu gostei de voltar à cena nestes espetáculos, dar aquela pinta de atriz”, lembra.

Neil LaBute, Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu

Em outubro, sob a encenação de Eric Lenate, Lavínia dá a largada na peça The Money Shot, de Neil LaBute, ao lado das atrizes Mel Lisboa e Jocasta Germano e do ator Fernando Billi. Como se estivesse em busca do tempo perdido, ainda em dezembro, estreia Hilda e Caio, texto e direção de Kiko Rieser, que trata do mítico encontro dos escritores Hilda Hilst (1930-2004) e Caio Fernando Abreu (1948-1996) na Casa do Sol, em Campinas. A atriz, claro, será Hilda e André Kirmayr representará o autor de Morangos Mofados. Se, em 2022, Lavínia confessa que morreu, pelo visto, ao longo de 2023, ela ressuscitou. Amém!

Serviço

Elizabeth Costello.

Espaço Mezanino do Centro Cultural Fiesp. Avenida Paulista, 1313.

Quinta a sábado, 20h30; domingo, 19h30. Grátis. Reservas pelo site www.sesisp.org.br/eventos.

Até 1º de outubro.

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Ficha Técnica

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Serviço

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