Ator, inspirado no universo do escritor argentino, escreveu cinco histórias próprias para o solo que estreia no Sesc Pompeia
Por Dirceu Alves Jr.
O primeiro livro do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) caiu nas mãos do ator paulistano João Paulo Lorenzon aos 10 anos. Foi graças a sua avó materna, Maria José Baptista Pereira (1916-1990), a vovó Zezé, que havia morrido recentemente e guardava um exemplar de Ficções. O neto, muito ligado a avó, vasculhava as coisas dela na tentativa de aliviar a saudade e, folheando Ficções, chamou a sua atenção uma anotação a caneta em uma das páginas finais. “Lindíssimo!”, teria grifado Zezé, provavelmente emocionada com algum trecho da narrativa.
Lorenzon tomou o livro para si e demorou um pouco para lê-lo. Só foi fazer isso lá pelos 15 ou 16 anos, quando já se sentiu preparado para decifrar parte dos enigmas do autor que, segundo lhe diziam, não eram nada fáceis e testavam a paciência dos leitores – muitos desistiam antes de chegar até a metade da obra.
“São referências fortes, a construção de uma realidade para cair na fantasia, tudo é sonho, tudo o que se perde ganha e acho que perdi a minha avó e ganhei a obra do Borges”, diz o ator e dramaturgo, aos 44 anos. Diante da descoberta, Lorenzon começou a pesquisar, correr atrás de informações, conversar com especialistas, fez de tudo para entender melhor a ficção labiríntica do argentino. A crescente paixão pela obra de Borges gerou o interesse de compartilhar fragmentos junto de seus amigos e amores e, na intenção de ampliar essa plateia, veio a ambição de transpô-lo para o teatro.
O espetáculo Quase Infinito, que estreia nesta terça, 21, no Espaço Cênico do Sesc Pompeia, é o terceiro encontro de Lorenzon com Jorge Luis Borges nos palcos. O primeiro deles foi Memória do Mundo, em 2008, e, quatro anos depois, entrou em cartaz Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória, que lhe rendeu uma indicação ao Prêmio Shell.
Sob a direção de Elcio Nogueira Seixas, o novo solo é dividido em cinco atos, batizados de “O Ódio”, “O Nada”, “A Incomunicabilidade”, “O Esquecimento” e “O Jardim”, pautados em enfrentamentos do homem diante das adversidades da vida.
Os personagens são um matador que corre sobre um trem em movimento, um palhaço preso a uma corrente, um prisioneiro acuado em uma jaula, um amante entediado na repetição do próprio erotismo e, por fim, um homem que renasce em um jardim regado por novas angulações.
“O ato final, o do jardim, foi criado na sala de ensaios porque o Elcio e eu sentimos que estava tudo dolorido demais, era uma pancada muito forte e vimos a necessidade de colocar uma esperança”, justifica o ator. “Mesmo com o mundo em colapso, precisamos achar um lugar de carinho, de ternura, que nos conecte a nossa infância.”
Se em Memória do Mundo e Eu Vi o Sol Brilhar em Toda a Sua Glória, Lorenzon transformou Borges em personagem e abordou conflitos relacionados a solidão, as questões familiares e a cegueira progressiva do escritor, em Quase Infinito, o atrevimento do dramaturgo se sobrepôs à idolatria e ganhou autonomia.
O ator e dramaturgo criou histórias próprias, inspiradas em sua apurada escuta vinculadas ao inconformismo, a raiva, a uma luta contra a tristeza e ao vazio, muitas delas percebidas durante o isolamento da pandemia. “Tem um salto de maturidade ou de loucura da minha parte porque criei uma escrita em cima do universo de Borges e não sobre o universo dele”, reconhece.
Quase Infinito marca a retomada da parceria com o diretor Elcio Nogueira Seixas deflagrada com Memória do Mundo, montagem que detonou a identidade artística desenvolvida por Lorenzon partir dali. Esta digital nasce da sua estreita ligação com a literatura levada ao palco com uma linguagem física, corpórea, quase carnal, que explora a resistência e até uma certa sensualidade.
“Com este novo texto, Lorenzon realizou um trabalho antropofágico em cima do Borges e isso se deve ao seu conhecimento pleno que tornou possível que ele devorasse cada trecho da obra parar recriar com suas próprias palavras”, ressalta o diretor.
Nogueira Seixas relembra que em Memória do Mundo uma das buscas foi a quebra do respeito excessivo ao escritor – algo que parece completamente superado no novo trabalho. Neste meio tempo, o ator seguiu seus mergulhos literários com peças inspiradas em O Funâmbulo, poema de Jean Genet, De Verdade, romance de Sándor Márai, além de enfocar outras artistas em Nijinsky – Minha Loucura é o Amor da Humanidade e Van Gogh – A Sombra do Invisível.
Dezesseis anos depois de Memória do Mundo, o amadurecimento do homem e do artista permitiu, segundo o diretor, que Lorenzon enxergasse um pouco de Borges em todas as suas experiências dos últimos anos e veio a segurança para o investimento em uma dramaturgia autoral. “Ele usou Borges para filtrar os próprios sentimentos e incorporou os aspectos poéticos e filosóficos a um trabalho físico que faz a literatura chegar de forma mais emocional ao público”, define Nogueira Seixas.
Serviço
Quase Infinito.
Sesc Pompeia – Espaço Cênico. Rua Clélia, 93, Pompeia.
Terça a sexta, 20h30. R$ 40. Dia 30/5, feriado de Corpus Christi, a sessão será às 17h30.
Até 7 de junho.