Atriz e cantora carioca leva ao palco a violência de um abuso sofrido na infância em solo, dirigido por Michelle Ferreira, que estreia no Centro Cultural Fiesp
Por Dirceu Alves Jr.
Em janeiro de 2020, dois meses antes de o mundo virar pandêmico, a atriz e cantora Helga Nemetik resolveu encarar a terapia com seriedade. Chegava perto dos 40 anos, tinha procurado o divã algumas vezes e, logo, desistido e precisava repensar o que queria para sua vida, sua carreira e para si mesma. “Sabe aquele papo de não se identificar com o psicanalista, de ficar cheia de trabalho e sem tempo?”, pergunta ela. “Tudo desculpa, eu não queria era enfrentar a mim mesma.”
Até que chegou o dia em que a Terra parou e, para não interromper as sessões, as conversas passaram do presencial para o virtual, como quase tudo na época. A tela do computador que separava Helga do interlocutor os aproximou mais ainda, e a artista ganhou coragem para abrir o jogo sobre um tabu que jamais abordara com ninguém, um abuso sexual sofrido na infância por uma pessoa próxima da família. “Eu guardei aquilo para mim, me sentia culpada, achei que poderia esquecer de tudo, tanto que só contei para minha mãe aos 35 anos e meu pai morreu sem saber”, revela a atriz e cantora, que hoje tem 43 anos. O psicanalista ouvia tudo com atenção, deixava a paciente cada vez mais à vontade e até que veio a provocação: “Você não é uma artista? Leva essa dor para o palco e busca ressignificar tudo isso para você”.
O resultado do desafio lançado na terapia on-line chega aos palcos nesta sexta, dia 7. O monólogo Não Conta pra Ninguém, escrito por Juliana Rosenthal e dirigido por Michelle Ferreira, estreia no Mezanino do Centro Cultural Fiesp e não quer ressignificar só o trauma, mas a trajetória de Helga Nemetik, Carioca, criada em Madureira, descendente de poloneses, ela sonhava ser atriz desde criança, mas a prioridade materna eram as aulas de inglês e de natação. O dinheiro não sobrava, até que a garota cresceu, foi trabalhar na loja de um shopping e, com o seu ordenado, fez a matrícula no curso de teatro do Tablado, comandado pela professora Maria Clara Machado (1921-2001). “Meu desejo sempre foi ser uma atriz completa, que dança, canta, faz comédia, drama, tragédia, mas fui colocada em uma caixinha que nem me deixam fazer testes para personagens mais densos”, declara.
É… O mundo é assim, e o mercado, então, nem se fala. Helga despontou no terreno dos musicais, firmando nome em produções como Chaplin, Meu Destino é Ser Star, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos e Vamp e, num dia já distante, em 2006, foi aplaudida pelo diretor Maurício Sherman (1931-2019), que a convidou para o elenco do humorístico Zorra Total, da Rede Globo. Agora, eram dois rótulos para quebrar, o de atriz de musical e o de comediante. “Decidi me dar de presente uma protagonista dramática e vi que só eu poderia fazer isso por mim”, conta ela, que ficou no Zorra Total até 2013 e participou das novelas Rock Story (2016) e Nos Tempos do Imperador (2021).
Indicada pela atriz Marisa Orth, Juliana Rosenthal se juntou ao projeto como autora e trouxe Michelle Ferreira, que trabalhava com ela nos roteiros da série Não Foi Minha Culpa, sobre feminicídio, exibida pelo Star +. Em Não Conta pra Ninguém, uma atriz e cantora vive um momento decisivo: a audição para aquele grande papel que sempre buscou. Na hora do teste, a voz some e, depois de muita investigação, descobre que o problema pode não ser físico e cabe a ela vasculhar o passado. “A personagem não se lembra de nada, nem do próprio nome e, claro, algumas situações são ficcionadas, como o gancho do teste, até para amenizar um pouco o tema”, antecipa.
Helga não queria cantar em cena. Juliana a convenceu do contrário e sua voz pode ser ouvida em dois momentos, no começo e no final. Michelle, que, além de diretora, é atriz e dramaturga, conhecia quase nada do trabalho da artista e a ausência de referências só fez bem ao encontro na sala de ensaios. “Eu não tive que limpar a comediante ou a atriz de musical, porque tudo estava lá, só precisei colocá-la num lugar de criação, trazê-la de volta para o chão da fábrica e essas duas facetas foram importantes para amenizar os momentos mais pesados”, diz Michelle. Helga procurou justamente esta experiência, a de avançar para uma mudança e poder interferir, trocar, chegar a um resultado junto das colegas. “Eu queria começar do zero porque quando se vai ensaiar um musical, por exemplo, já existe uma partitura que deve ser seguida e a gente tem muito pouca liberdade de criar.”
Michelle, que faz 42 anos no dia 8, é da mesma geração de Helga, aquela turma de classe média que falou pouco de feminismo porque parecia que as coisas já estavam resolvidas. E, com o tempo, se viu que nada estava resolvido. Responsável pela dramaturgia das peças Eu não Sou Harvey, Bárbara e A Última Entrevista de Marília Gabriela, Michelle acredita que o teatro ainda é a melhor forma de contar uma história que vai ser vista e poderá atingir alguém. “Eu mesma tive casos de abuso na infância, é um tema que precisa ser levantado e esse gênero da autoficção me fascina muito, não pelo fetiche da realidade, mas porque é uma forma de trazer a verdade para o teatro”, conta.
Devido a todo um contexto histórico, as novas gerações de mulheres se mostram mais dispostas a falar sobre os casos de assédio e encontram um acolhimento maior, inclusive, na hora da denúncia. Helga reconhece essa evolução, mas avisa que é preciso ficar atenta para as meninas de ontem, como as suas contemporâneas, que passaram por esse tipo de violência e até hoje não sabem lidar com a dor. “Tenho recebido mensagens nas redes sociais de mulheres, que, como eu, acreditaram que era só jogar o problema para baixo do tapete que ficaria tudo bem e é para elas que faço o espetáculo”, afirma. “Chegou uma hora em que comecei a ter crise de pânico, me travei sexualmente, desenvolvi uma compulsão alimentar porque se engordasse eu não chamaria a atenção de ninguém, então o trauma não passa, precisa ser revelado e discutido.”
Serviço
Não Conta pra Ninguém.
Espaço Mezanino – Centro Cultural Fiesp. Avenida Paulista, 1313.
Sexta e sábado, 20h30. Domingo, 19h30. Grátis.
Reservas e informações no site centroculturalfiesp.com.br.
Até 4 de agosto. A partir de sexta (7).