Ator e diretora se reencontram em nova versão do solo lançado há quinze anos para dialogar com transformações recentes do mundo
Por Dirceu Alves Jr.
Quase nada no mundo é igual a 2009. Em fevereiro daquele ano, o ator Guilherme Leme – que ainda não tinha juntado o sobrenome Garcia a sua assinatura artística – estreou o monólogo O Estrangeiro no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, marcando a primeira direção da atriz Vera Holtz. A adaptação do romance do escritor argelino Albert Camus (1913-1960), realizada pelo dinamarquês Morten Kirkskov e traduzida por Liane Lazoski, impactou público e crítica, correu o país e encerrou carreira no Festival de Teatro de Edimburgo, na Escócia, em 2012.
Em 2012, quase nada também era igual ao que é hoje. O país ainda vivia uma estabilidade política e econômica, o mundo parecia ter dado um tempo em sua fúria bélica e seria chamado de lunático quem falasse que uma pandemia isolaria a população em suas casas e deixaria o saldo de 700 mil mortes só no Brasil. “Era outra vida, nós éramos outras pessoas e não tínhamos vivenciado um governo horroroso como o de Jair Bolsonaro”, compara Leme Garcia, que hoje tem 63 anos.
Revisitar O Estrangeiro quinze anos depois, só faria sentido se fosse concebido um novo espetáculo. O protagonista resistiu bastante à ideia, foi provocado insistentemente pelo curador André Acioli e pelo produtor Sérgio Saboya e, diante de uma possibilidade concreta, dividiu as incertezas com Vera. “Tem que ser uma outra versão ou vai parecer um prato requentado”, advertiu a diretora, que, entre fevereiro e abril, percorreu Portugal com o espetáculo Ficções, mas avisou que poderia começar os trabalhos em reuniões virtuais.
O que estreia nesta quinta, 16, no Teatro Vivo, é O Estrangeiro_Reloaded, uma nova visão para a obra de Camus e para a montagem de 15 anos atrás. O monólogo é centrado em Meursault, um homem que levava uma vida banal até se ver envolvido em uma sucessão de absurdos. A sua mãe morre, ele comete um crime, vai preso e, em meio à controversa relação entre o indivíduo e a lei, acaba condenado à pena de morte. “Criamos um olhar mais simplificado sobre a história desse personagem que está em looping”, explica Vera, que passou a acompanhar os ensaios presenciais há três semanas, assim que voltou de viagem. “Não determinamos os espaços, mas é como se ele saísse para tomar um sol no pátio da penitenciária enquanto espera o dia em que será executado”.
Para Leme Garcia, o personagem revisita a própria história, talvez até para entender tudo o que aconteceu em sua vida. O artista acredita que a atual montagem pode ter ficado ainda mais minimalista que a anterior e, para refinar a sua interpretação, imaginou uma camada subjetiva entre Meursault, Camus e ele mesmo. ‘É como se a gente resgatasse o pensamento deste livro que roda o mundo há mais de 80 anos e juntasse às vozes de Meursault e Camus e o meu olhar em cima deles dois”, afirma.
O protagonista considera que os últimos anos estabeleceram uma nova conexão com a obra de Camus, principalmente depois da pandemia e da explosão das guerras da Ucrânia e de Israel. “Não dá para ignorar que o livro foi lançado em meio a Segunda Guerra Mundial, e acredito que o mundo se tornou mais existencialista, como na filosofia de Camus”, justifica. “As pessoas passaram a valorizar novamente o presente por causa de uma série de desilusões com as perspectivas de futuro que sempre alimentamos.”
Entre O Estrangeiro e O Estrangeiro_Reloaded, Garcia Leme também enfrentou desafios e remodelou a vida. O ator superou um câncer na garganta, diagnosticado em 2013, e, cansado do Rio de Janeiro, onde vivia desde 1987, voltou a morar em São Paulo há sete anos. “O Rio estava triste, chato, sem novidades para mim, então meu pai ficou doente e vim para cá ajudar a minha mãe a cuidá-lo”, conta. “Um ano depois, ele morreu, vi que minha mãe também precisaria da minha atenção e, para mim, mudar foi resgatar a minha terra.”
Com exceção de O Estrangeiro, o nome de Guilherme Leme Garcia é muito mais associado na última década e meia ao ofício de diretor que de intérprete. Ele comandou Betty Faria em Shirley Valentine, Luís Melo em RockAntygona e Marcos Caruso e Eliane Giardini em Intimidade Indecente, entre outros. No terreno dos musicais respondeu pelas encenações de Romeu & Julieta, o Musical, Merlin e Arthur, Um Sonho de Liberdade e da ópera Isolda/Tristão, levada no ano passado ao Theatro Municipal.
Em junho, ele estreia uma nova direção, o espetáculo Realpolitik, texto da dramaturga Daniela Pereira de Carvalho, protagonizado pelos atores Augusto Zacchi e Pedro Osório, que vai ocupar o Teatro B32. Na trama, um jornalista entrevista o diretor de uma mineradora e, em meio aos questionamentos sobre as atividades da empresa, começa a querer corrigir situações das quais ele mesmo pode ter sido cúmplice no passado. “A peça traz um enfoque sobre as catástrofes ambientais, algo que todos nós precisamos ficar atentos, porque a fatura já está sendo cobrada”, diz Leme Garcia que, para março do ano que vem, ainda promete Hip Hop Hamlet, em parceria com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.
Serviço
O Estrangeiro_Reloaded.
Teatro Vivo. Avenida Doutor Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi.
Terça a quinta, 20h. R$ 120.
Até 27 de junho. A partir de quinta (16).