Técnica chinesa de manipular bonecos de luva enriquece a debochada trama da nova peça do grupo, que simula seu desaparecimento por 20 anos, para investigar o papel do teatro de animação nos dias de hoje
Por Dib Carneiro Neto
Nada como saber rir de si mesmo e tirar disso os melhores frutos, as melhores ideias. Pois foi investigando a própria trajetória de 37 anos que o Grupo Sobrevento, um dos mais respeitados do Brasil quando se fala em teatro de animação, resolveu revisitar um sucesso de seu repertório, Cadê o Meu Herói?, de 1998, ou seja, 25 anos atrás. Nesta peça, o grupo foi celebrado por crítica e público por harmonizar apuro técnico e humor debochado, engenho e arte, precisão e leveza. Ainda era o século passado e o Sobrevento já demonstrava que um espetáculo poderia ser destinado “a todas as idades”, agradando tanto às crianças quanto aos adultos.
Mas revisitar Cadê Meu Herói? não quer dizer que o grupo resolveu remontar a mesma peça. Em se tratando do Sobrevento, isso seria pouco. É um grupo formado não simplesmente por meros artistas com sede de realização, mas por reais pensadores da cultura brasileira, gente inteligente enfronhada nas questões mais profundas do fazer teatral. Gente que se investiga, se questiona, antes de tentar chegar a algum lugar.
E sempre chegam. O espetáculo se chama Cadê o Sobrevento?: Vinte Anos Depois. A temporada acontece no Teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo, até o início de outubro. “Decidimos que o foco seria o olhar para nós mesmos, o que aconteceu com o grupo nesse tempo todo e o que teria acontecido ao castelo onde a trama original se passava”, conta Luiz André Cherubini, um dos fundadores do grupo e diretor do novo espetáculo. “É uma busca de entender o que é o nosso grupo hoje, o que é o mundo hoje, o que é o teatro de bonecos hoje. E compreender a relação entre essas três pontas: o Sobrevento, o teatro de bonecos e o mundo.”
Grafites e protestos.
A peça original completou 25 anos da estreia, mas o subtítulo “20 anos depois” refere-se ao enredo fictício: quando a trama acabava, nascia uma princesa, que agora teria 20 anos. Esta a seguir é a sinopse da nova Cadê o Sobrevento:
“Há 20 anos, o famoso Grupo de Teatro de Bonecos Sobrevento, conhecido pelo espetáculo Cadê Meu Herói?, desapareceu sem deixar vestígios. Grafites e protestos no País exigem respostas. No mesmo castelo que servia de cenário para o espetáculo de antigamente, uma baronesa aprisiona a sua filha, que sonha em explorar o mundo exterior quando crescer. Cheia de monstros e heróis, a história revela as mudanças na princesinha, no Sobrevento, no seu Teatro e no mundo, passados 20 anos.”
O grupo sumiu, desapareceu, escafedeu-se? Como assim? O tom escolhido pela dramaturgia, escrita pelo autor argentino Horácio Tignanelli (o mesmo da peça original de 1998 e parceiro constante do Sobrevento), é o tom de deboche. Luiz André Cherubini explica o motivo: “O Grupo Sobrevento usa o deboche porque somos um grupo que sabe rir de si mesmo, rir do teatro de bonecos que perseguimos com tanto empenho. Rimos das dificuldades todas que já enfrentamos. Tentamos questionar nossa trajetória. Ninguém mais hoje em dia pode subir no pedestal e se colocar como autoridade de nada, porque estamos o tempo todo procurando aprender, tropeçando, batendo a cara nos muros. Essa capacidade de poder rir de si é uma característica geral da cultura brasileira. No teatro chinês de animação, que nos inspirou, há um ar muito mais sério em tudo, ritualístico e até religioso, por acontecer em templos. Aqui, a gente prefere o ar de festa, a busca pela celebração. Esse é o deboche que a gente busca. Rir e contagiar o público com essa alegria que o teatro de bonecos sempre desperta, ao lado de muita poesia.”
A técnica a serviço da dramaturgia.
Cherubini explica um pouco sobre como foi a montagem de 25 anos atrás e que importância ela teve na história do grupo. Segundo diz, o Sobrevento estava num momento crucial de interesse pelo aperfeiçoamento técnico: “Fazer a peça marcou nosso entendimento do teatro de bonecos como uma busca de técnica, quase uma perseguição, de forma dura e apaixonada, com muito afinco. Quando ouvimos da boca da crítica Barbara Heliodora que nunca ninguém aqui no Brasil jamais conseguiria manipular bonecos de luva como Yang Feng, nosso mestre e amigo chinês, isso virou um desafio. Ele veio para cá a nosso convite e ficou cinco semanas por aqui, numa convivência diária com a gente, contribuindo para a coreografia dos movimentos da peça.”
O encontro do Sobrevento com o mestre bonequeiro da China foi puro triunfo. “Conseguimos um resultado muito bom, tão bom que outra companhia chinesa de teatro de bonecos viu nosso espetáculo e decidiu retirar os bonecos de luva de seu repertório, porque viram que aqui no Brasil fazíamos melhor do que eles”, relembra Cherubini. “Isso nos encheu de orgulho, mas não era tão verdadeiro. Ficou a impressão de que dominávamos tudo, só que não. Mestre Feng nos ensinou cerca de 100 movimentos – e nós aprendemos direito mesmo apenas 10 desses 100 e os pusemos na peça. Ficou a impressão de que já sabíamos tudo sobre boneco de luva, mas é que, na verdade, pusemos no espetáculo só o que de fato aprendemos bem. O teatro de bonecos que a gente buscava era uma mistura dessa técnica chinesa com uma dramaturgia debochada, bem-humorada, sem cerimônia… Tivemos para isso as contribuições de um dramaturgo argentino, Horácio Tignanelli, e do mamulengueiro pernambucano Mestre Saúba. Cadê o Meu Herói foi um cruzamento disso tudo e nos rendeu um Prêmio Mambembe justamente pela manipulação dos bonecos e apresentações por quase todos os Estados do Brasil, menos dois. Em cada apresentação havia de 8 mil a 30 mil espectadores na plateia. Foi um orgulho.”
Aceita uma xícara de chá?
Quem via Cadê o Meu Herói? saía impactado com a grandiosidade dos movimentos dos bonecos nas lutas espetaculosas dos personagens do castelo. Agora, em Cadê o Sobrevento?, as lutas continuam, mas haverá algo de novo na técnica, que Luiz André Cherubini nos adianta: “Yang Feng, quando morreu, legou essa tradição (ele já era bonequeiro de quinta geração) ao seu irmão Yeung Fai. Nós fomos atrás dele. Também começamos a segui-lo por suas apresentações em muitos festivais e viramos amigos dele também. Fai acabou nos revelando mais coisas sobre essa técnica de luva, não só as lutas impressionantes que fazíamos com os bonecos na montagem original, com cambalhotas, estrelas, saltos mortais… Ele nos ensinou uma abordagem de maior delicadeza, de caráter mais intimista, em que os bonecos são capazes de realizar ações muito delicadas e surpreendentes, como dançar com um leque e servir um chá. Xícaras passam de mão em mão, com muito virtuosismo.”
Não foi simples aprender tudo isso. Mas se fosse fácil não seria um projeto do Grupo Sobrevento. Cherubini, como diretor desafiado, nos revela que, por ser uma técnica que demanda muita precisão e treinamento, os ensaios acabavam sendo menos prazerosos e mais desgastantes e árduos. Ele relembra: “Com cinco minutos de ensaio, às vezes a gente percebia que tinha de parar tudo, para confeccionar o boneco de forma mais adequada, o que demandava mais oito horas. Ou seja, cinco minutos de ensaio para oito horas de reestruturação do boneco. Isso desgastava. Os ensaios não fluíram de forma leve. Foi a maior dificuldade que tivemos e muitas vezes gerava descrença. Será que vamos conseguir um bom efeito, atingir a qualidade técnica? Assim, é um tipo de espetáculo que a gente já sabe de antemão: ele vai melhorando e se aperfeiçoando ao longo da temporada. Além de refletir muito sobre nosso ofício e nosso papel, somos um grupo que quer estar no palco, mais do que qualquer coisa. Certa vez, fizemos uma conta e descobrimos que tínhamos feito, até ali, 119 apresentações por ano, ao longo de 32 anos. Isso é muito coisa. Um dia em cada três de nossas vidas passamos sobre o palco, pisando num palco. Isso é que aperfeiçoa o trabalho: fazer, fazer, fazer… E isso responde um pouco a pergunta do título da peça. Cadê o Sobrevento? Está no palco. É assim que a gente melhora, se descobre, se aperfeiçoa.”
A busca jovem por liberdade.
Para além desse cuidado extremo com a técnica, o Sobrevento nunca descuida também dos temas que enxerta em suas tramas. Que temáticas, além de rir de si mesmos, eles querem transmitir ao público desta vez em Cadê o Sobrevento? Luiz André Cherubini responde: “Desta vez a gente fala de liberdade, de juventude, da busca que os jovens têm por liberdade e como eles abrem os nossos olhos para isso. É o que o Sobrevento sempre pretendeu: buscar essa liberdade junto com os bonecos. Também estamos reforçando um tema que já vem de outros espetáculos nossos: o mal-entendido, ou seja, procuramos falar do quanto é importante saber compreender um ao outro. Se a gente tivesse conversado melhor, a gente teria resolvido – esse tema está muito presente no espetáculo.”
Em Cadê o Sobrevento?, haverá, também, intervenções gravadas em vídeo. Sinal dos tempos? Sim, com certeza. “Um telão revelará todos os detalhes da manipulação dos bonecos. O público poderá ver ampliados os movimentos de sentar-se, varrer, escalar, servir o chá – tudo isso será registrado no telão, como uma lente de aumento. Mas não é só para ampliar os detalhes. O telão estará ali também como referência crítica aos reality shows, ou como memória do isolamento da pandemia, que transformou tudo em conteúdo digital. E também como um toque ao medo do desconhecido.”
Como tem ocorrido com todos os espetáculos recentes do Grupo Sobrevento, na ficha técnica aparece escrito: para todas as idades. O que Luiz André Cherubini teria a nos dizer sobre isso? “Bem, as crianças vão se divertir com o tom festivo de aventura. Elas vão se surpreender com a alegria e com todas as surpresas que os fantoches trarão. Os adultos vão ver tudo isso também , talvez com outros olhares e outro tipo de leitura, mas o fato é que é um espetáculo para as famílias verem juntas, como celebração, encontro, festa. Real e presencial. Uma busca pela comunhão que a gente tanto sonha, sendo artistas bonequeiros.”
Quer ver um trecho do espetáculo original, Cadê o Meu Herói?, de 1998, para entender melhor o que vem por aí em Cadê o Sobrevento? Clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=XZIlpO6RTNs
Serviço
Cadê o Sobrevento?: Vinte Anos Depois
Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93
Sextas e sábados, 20h. Domingos e feriados, 17h. R$ 25. Grátis para crianças até 12 anos.
Até 1º de outubro