Falando de brincadeiras e medos de infância, o espetáculo de bonecos da cia. As Graças, que estreou em 1996, faz temporada no Sesc Ipiranga, depois de um sopro de renovação trazido pelo novo diretor de movimento, Marco Lima
Por Dib Carneiro Neto
Em 1996, portanto há 28 anos, uma companhia formada só por mulheres, de nome As Graças, estreava em São Paulo, no Teatro Cacilda Becker, o infantil Poemas para Brincar, inspirado em poemas bem brincalhões de José Paulo Paes (1926-1998). Foi uma temporada retumbante. A peça nunca saiu do repertório do grupo e agora ganhou nova roupagem (com o convite para Marco Lima assinar a direção de movimentos) e nova temporada, no Sesc Ipiranga.
Antes de mais nada, é preciso registrar aqui o quanto isso é precioso, valioso, motivador. Crianças que viram há 28 anos poderão agora levar suas crianças. Como é incrível constatar o quanto um espetáculo pode ser longevo, pode ser atemporal, pode atravessar gerações. E como deve ser tão desafiador e prazeroso para a companhia continuar fazendo a mesma peça por tanto tempo, constatando ano a ano que é uma joia rara, resistente e fortemente viva em seu repertório.
Não foi sem dores. Não foi sem perdas. O poeta partiu dois anos depois da estreia. E Juliana Gontijo, na pandemia, há três anos encantou-se. Ju, como era chamada no grupo, foi uma das fundadoras de As Graças e a idealizadora e adaptadora dos Poemas para Brincar. Entendia de poesia e de bonecos como ninguém da companhia. Continua viva com o espetáculo, sobretudo porque a gravação da trilha – em que ela canta – foi mantida, ou seja, sua voz está no espetáculo, a cada sessão. Uma emoção a mais, diante de tantas delicadezas mantidas em cena e pensadas por ela há 28 anos.
No elenco, em sua lugar para fazer Poemas para Brincar, entrou ninguém menos do que Flávio Pires, que era casado com ela. Flávio sempre foi presente. Era operador de som e luz nas temporadas todas e, certa vez, há uns dois anos antes do início da pandemia, ele a substituiu, por um compromisso inadiável que Juliana tinha naquele dia com os Doutores da Alegria. Mal sabia Flávio que um dia esse lugar seria mesmo seu, ainda que carregado de dor e saudade.
“A vassoura deixou a louca varrida”
Poemas para Brincar é um espetáculo de bonecos que fala de brincadeiras de criança, como a pipa, a bola, e também fale de rio, de bichos e do medo de… cemitério. Fala com poemas, livres, leves e soltos, compondo um painel de brincadeiras também sonoras, jogos de palavras. A vassoura que deixou a louca varrida. O dentista que roubou o dente do alho. E assim por diante. Puro deleite, também para adultos. Brincar de poesia.
“O espetáculo tem uma linguagem que não envelhece, é uma brincadeira que continua bem viva”, diz Eliana Bolanho, também fundadora de As Graças. “Claro, algumas questões corporais mudaram. Hoje eu sou uma sexagenária. Uso um banquinho que eu não usava antes, uso joelheiras mais firmes. Mas é muito estimulante adaptar nossos corpos para manter todo esse frescor atemporal que o espetáculo nunca vai perder.”
“Essa pureza, esse jogo de descobertas, não tem tecnologia que vença”, diz Vera Abbud, também no elenco há muitos anos. “O Paes, com seus poemas, nos mostra um mundo no despertar das infâncias. Criança adora usar as palavras como brincadeira. Sempre na hora da caveira, as crianças gritam de medo, um frisson se instala, e isso não mudou nada nesses anos todos, é muito legal porque isso diz muito sobre o que é ser criança, não importa o tempo, a tecnologia, os avanços.”
Prêmios ajudaram muito no primeiro ano
As meninas, digo, as Graças, relembram como foi a primeira temporada, em 1996. “Tivemos situações muito especiais”, principia Eliana. “Foi, por exemplo, o momento da chegada da Vera Abbud ao grupo. Ela chegou para ficar, nunca mais saiu das Graças. Um grande ganho. Outra alegria da primeira temporada foi ter José Paulo Paes muito presente. Ele nos abriu sua casa, nos apresentou a mulher, seu lugar de escrever, foi muito acolhedor e nos deu uma fita cassete nos apresentando o Madan, o músico que já tinha colocado melodias nos poemas dele e que nós usamos até hoje. E mais: quando a gente falou dos direitos autorais para o Paes, ele nos respondeu para usar a parte dele na continuidade do grupo. Olha que lindo. São lembranças de um início muito feliz.”
“Nessa primeira temporada, o que fez com que a gente se estruturasse foram os prêmios”, acrescenta Vera Abbud. “Logo de cara, ganhamos Mambembe, Femsa e APCA com Poemas para Brincar, e isso foi muito estimulante e proveitoso, porque esses prêmios abriram portas, nos deram visibilidade e a certeza de que estávamos no caminho certo. Além do mais, havia valor em dinheiro em algumas dessas premiações, o que nos permitiu prosseguir financeiramente, inclusive. Pena que isso acabou. Os prêmios precisam voltar.”
Uma trajetória diversa, do sertão às metrópoles
E os frutos continuaram sendo colhidos. “Houve algumas paradas mais longas, mas, na verdade, Poemas nunca se encerrou, sempre havia um convite novo surgindo”, conta Eliana. “Como em janeiro de 1999, quando recebemos um convite para fazer o Projeto Móvel de Cultura e Meio Ambiente, que percorreu 13 cidades do interior de Alagoas e de Pernambuco. Os sertões. Isso foi um marco nas nossas vidas. Começamos ali o desejo de circular com nosso ônibus, que criamos de fato algum tempo depois.”
Em 2016, o espetáculo foi contemplado com o Prêmio Myriam Muniz para circular por oito cidades entre a nascente e a foz do Rio Jequitinhonha, nos Estados de Minas Gerais e Bahia. E em 2019, ainda percorreu oito comunidades ribeirinhas no Estado do Pará (rios Arapiuns e Tapajós). Vera celebra: “Jequitinhonha , Tapajós, comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas, centros urbanos e rurais, interior e grandes cidades, escolas precárias e outras bilíngues, já passamos por tudo isso, no Brasil, com Poemas para Brincar.” Eliana também exulta: “A gente nunca pensou que o Poemas teria todo esse caminho percorrido, que se confunde com a nossa própria trajetória como companhia.”
O olhar de fora de um gigante
Agora, em 2024, com o convite feito a Marco Lima para “refazer” a direção de movimento da peça, isso significou o sopro de renovação de que Poemas para Brincar já carecia, segundo dizem as próprias atrizes. “Sentimos essa necessidade, porque quando você faz um espetáculo durante muito tempo, às vezes você cristaliza um pouco certos gestos, tem o risco de ficar mecânico”, admite Eliana Bolanho. “Esse olhar de fora do gigante Marco foi fundamental. Ele trouxe nova vida para a peça, para os bonecos, para tudo. Virou quase um recomeço, os frios na barriga voltaram todos.”
Vera Abbud toma a palavra e corrobora: “A calibragem do Marco foi um ganho muito incrível. Os bonecos estão interagindo como se estivessem mais vivos, sob o olhar do Marco Lima. Ele manipula como ninguém, entende de bonecos como poucos. Eduardo Amos nos dirigiu lá no começo e depois ficamos muitos anos sem o olhar de perto de um diretor. Agora, não podemos esquecer também do seguinte: o que melhorou mesmo foi a nossa maturidade como atrizes, a gente entende melhor hoje as palavras, as entonações. O tempo a nosso favor.”
SERVIÇO
Poemas Para Brincar
Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo. Tel. 11 3340-2000.
Domingos, 11h. R$ 30. Grátis para crianças até 12 anos
Até 17 de março