Produtor cultural se lembra da atriz de repertório impecável, de sensibilidade única, e que sempre foi discreta
Por João Fernando*
Em 14 de novembro de 2023, Cleyde Yáconis completaria 100 anos. Ela foi a melhor atriz que vi nos palcos. Já testemunhei diversas interpretações arrebatadoras, mas, como Cleyde, só Cleyde! Ou talvez Cacilda, a irmã mais exibida, já que Cleyde sempre foi discreta. Eu poderia tecer uma infinidade de elogios a essa atriz de repertório impecável (ela tinha muito orgulho de ter encenado os principais autores do teatro brasileiro e mundial), de sensibilidade única, de profunda entrega a cada personagem, de disciplina rigorosa… Mas isso não é novidade e nem privilégio meu. Todos que a assistiram em alguma das mais de cem peças em que atuou provavelmente concordam comigo.
Mas este texto não é sobre a atriz e, sim, sobre a mulher Cleyde Becker Yáconis, filha de dona Alzira e irmã de Dirce e Cacilda, que juntas formavam “um banquinho de quatro pernas”, como ela dizia.
Cleyde e eu convivemos intensamente nos seus últimos seis anos de vida. Nesse período, possivelmente nos falamos ao telefone diariamente. E nunca ficamos mais de 30 dias sem nos ver: trabalhando juntos, indo ao teatro, em viagens de carro para o Rio de Janeiro ou alguma cidade onde ela se apresentaria, saindo para almoçar ou jantar, batendo longos papos na sua casa em Jordanésia. Ou mesmo quando a acompanhava em alguma consulta médica e, em momentos mais difíceis, estando ao seu lado em duas internações: uma no Rio de Janeiro, após ter quebrado o fêmur, e outra bem mais longa, em São Paulo, após sofrer um aneurisma cerebral do qual nunca se recuperou plenamente, vindo a falecer no Hospital Sírio-Libanês após meses de tratamento.
Diversas vezes ouvi: “Você é o filho que a Cleyde não teve” e “ela dever ser como uma avó pra você”. Não! A nossa convivência intensa e extremamente prazerosa tem um nome só: AMIZADE. Nós éramos “apenas” grandes amigos! Cleyde não substituiu nada na minha vida, e acredito que também não fui substituto de nada na vida dela. Ela não teve filhos porque não os quis ter. Nas inúmeras vezes que nos reunimos, nunca senti que ela fosse uma “senhorinha” 41 anos mais velha do que eu. Era uma mulher muito bonita, inteligente, instigante, generosa, bem-humorada, sincera, íntegra, divertida e pouco convencional que eu ia visitar.
Nosso encontro foi a união de duas pessoas fechadas que foram se conquistando aos poucos. Ter me recebido no portão da sua casa quando fui convidá-la para protagonizar a peça O Caminho para Meca demonstra o quanto ela preservava sua intimidade. Na segunda visita, conquistei o privilégio de chegar à varanda. Depois, aos poucos, vieram a sala, a cozinha, o quarto e o coração.
Para sempre na minha memória terei guardadas inúmeras histórias da nossa grande e especial amizade. Umas engraçadas, outras emocionantes ou alegres e tristes… Uma delas é assim:
Eu telefono para Cleyde:
– Oi Cleyde, tudo bem com você?
– Tudo, meu anjo, e você? É o João ou é o Fernando?
(Me chamo João Fernando e, para Cleyde, João era o amigo e Fernando, o produtor.)
– É o João. Tá tudo ótimo! Você precisa de alguma coisa? Muito frio em Jordanésia?
– Um frio de rachar, meu anjo, mas não preciso de nada! Está tudo ótimo. Um dia lindo! O jardim está lindo…
– Aqui também tá bem frio! Mas a gente gosta de frio, né?
– Adoro esse frio! Mas tá difícil…
– Então tá Cleyde, estou por aqui! Qualquer coisa liga, tá?
– Claro. Um beijo, meu anjo.
– Outro. Até já.
Desliguei o telefone e pedi ao nosso fiel escudeiro Pio (que foi nosso motorista por alguns anos) que levasse um aquecedor elétrico para ela em Jordanésia. “Você leva e ensina ela e a Dadá como liga, desliga etc…”
Uma hora e meia mais tarde, Cleyde me liga:
– Meu anjo, tudo bem? Eu adorei o aquecedor que você me mandou. Vou colocar um apelido nele. Parece um robozinho. E como você me mandou um presente pra eu me aquecer de fora pra dentro, o seu Pio está levando pra você um presente que é pra você se aquecer de dentro pra fora. Um beijo, meu anjo.
Uma hora depois desse telefonema, Pio entra no escritório com o presente dela: uma garrafa de conhaque. Ao chegar à minha casa, morrendo de frio, vou o até o armário pegar um copo para tomar um gole do conhaque e vejo, numa das prateleiras, o mais especial dos presentes que ganhei de Cleyde: o Prêmio Molière – o primeiro que ela recebeu, ainda nos anos 1960, por sua atuação em Toda Nudez Será Castigada –, que Cleyde generosamente me deu antes de uma viagem de férias, dizendo: “Vá, mas volte”.
Obrigado, Cleyde, por tudo que vivemos juntos, pelos momentos inesquecíveis que partilhamos e por tudo que você me ensinou com sua sabedoria simples e sem vaidade. Obrigado por sempre ter aquecido meu coração de dentro pra fora! Eu te amo.
Cleyde Yáconis morreu no dia 15 de abril de 2013 em São Paulo e foi enterrada em Jordanésia, onde viveu por décadas numa casa térrea de madeira e alvenaria, rodeada por um imenso jardim com muitas rosas, orquídeas, margaridas… e árvores frutíferas.
* Conhecido no mundo das artes como Fernando Cardoso, é produtor e diretor de teatro, sócio da Mesa 2 Produções.