Atriz, que também aparece desnuda em cena, é protagonista e produtora do musical “Tarsila, a Brasileira”, sobre a pintora modernista
Por Ubiratan Brasil
Quando se refugiava da pandemia da covid em Bragança Paulista, em 2020, a atriz e produtora Claudia Raia recebeu um telefonema que a surpreendeu. Do outro lado da linha, Tarsilinha, sobrinha-neta da pintora Tarsila do Amaral, fez um pedido especial: que ela protagonizasse e produzisse um musical sobre sua tia-avó, pois via nas duas a mesma força criativa.
“Fiquei honrada pelo convite e, depois de pesquisar sobre a pintora, percebi que era um grande desafio, pois se trata de uma mulher completamente diferente de mim”, conta Raia, que assumiu o compromisso e agora estreia Tarsila, a Brasileira, no Teatro Santander. “Não se trata de um espetáculo didático: nossa intenção é a de fascinar o público”, avisa o diretor José Possi Neto.
De fato, com texto de Anna Toledo e do próprio Possi, o musical traz o recorte de uma vida marcada por muitos sucessos e fracassos, tanto no aspecto artístico como pessoal. A obra de Tarsila do Amaral (1886-1973), influenciada por vanguardas europeias, especialmente pelo cubismo, trouxe um estilo próprio à pintura brasileira, explorando formas, temáticas e cores na busca por uma pintura de caráter tipicamente brasileiro, características importantes do movimento. E ainda ela se notabilizou por quadros icônicos, como Abaporu.
“Apesar de ser um dos nomes mais aclamados na história da arte brasileira, Tarsila era uma mulher tímida, enigmática, misteriosa, alguém completamente diferente de mim”, conta Claudia. “Nas pesquisas que fiz, descobri que a força dela estava justamente nessa timidez, na sua contenção, perceptível nos ombros mais pronunciados, no olhar mais baixo, mas com grande poder de ação. Era uma mulher plena, segura, mesmo tendo vivido muita coisa.”
Filha de uma rica família de cafeicultores paulistas, Tarsila teve uma educação esmerada, com passagens pela Europa. Mas seu talento realmente despontou com a amizade da também pintora Anita Malfatti (vivida por Keila Bueno) e do escritor Mário de Andrade (Dennis Pinheiro). Mas principalmente do autor e dramaturgo Oswald de Andrade (Jarbas Homem de Mello), que se tornou seu marido e grande incentivador.
O casamento aconteceu em 1923 e uniu duas pessoas muito distintas. “Ele era um aventureiro, com o olhar sempre no futuro, o que o deixava livre para dizer suas verdades mesmo que isso incomodasse as pessoas”, conta o ator, lembrando que Oswald foi o grande amor de Tarsila e juntos participaram dos grandes movimentos modernistas, como as fases Pau-Brasil e Antropofágica.
“Um grande momento do musical é quando Tarsila presenteia Oswald no seu aniversário com o quadro Abaporu, em 1928″, conta Claudia. “Ela estava em busca da imagem certa, da cor perfeita, e encontrou em um autorretrato. Poucas pessoas sabem que o Abaporu é fruto da visão que ela teve de si mesma nua olhando em um espelho que, por estar torto, mostrava seu corpo deformado, com pés enormes.” A nudez artística de Claudia, aliás, é outra novidade apresentada no musical.
O espetáculo, porém, não traz apenas os bons momentosa da pintora, mas também detalhes pouco conhecidos da sua trajetória. “O lado B da pintora marca o segundo ato, onde conhecemos uma outra mulher, que precisou de muita coragem para suportar tantos infortúnios. Foi um pedido da família que esses fatos fossem revelados”, conta Claudia.
De fato, Tarsila enfrentou quatro casamentos frustrados, somou poucos amigos sinceros e, ignorada pela crítica de seu tempo, foi obrigada a vender quadros por encomenda até o final da vida. Sem dinheiro, precisou pintar paredes em Paris para conseguir retornar ao Brasil de uma viagem a Moscou. E, em 1965, um erro médico na cirurgia de coluna, a deixou paralítica. No ano seguinte, perdeu sua única filha, Dulce. Entristecida, Tarsila chegou a procurar o médium Chico Xavier em busca de conforto espiritual.
“Talvez Tarsila desconfiasse que uma mulher independente incomoda muita gente. E talvez ela não fizesse questão de alardear sua independência – por temperamento, ou por estratégia, talvez um pouco de cada”, acredita Anna Toledo. “O que sabemos – e exploramos no palco – foi a sua tremenda habilidade de chegar onde queria sem bater de frente com ninguém, sempre através da festa e do encantamento. Talvez o superpoder de Tarsila fosse justamente a capacidade de se encantar infinitamente com as possibilidades do mundo e de encantar o mundo à sua volta.”
Para isso, o desafio musical enfrentado por Tony Lucchesi e Guilherme Terra foi grande. “Nossa inspiração foi de Villa-Lobos a Frank Zappa“, conta Terra. “Era importante ser antropofágico na criação, daí a importância do som do Tropicalismo criado por Rogério Duprat.”
O mesmo conceito norteou Alonso Barros na criação da coreografia e direção de movimentos. “Primeiro precisei entender como Claudia pretendia interpretar a Tarsila até encontrar a linguagem corporal adequada. Para isso, ela (e todo o elenco) foi obrigada a se desconstruir para então começar algo novo”, conta ele.
O fato de ser um musical original escrito para ela possibilitou que Claudia pudesse usar seu tom de voz natural, o de contralto. “Sempre tive de adaptar minha voz, pois não existem papeis que usam essa tonalidade”, comenta a atriz. “Claudia valoriza muito o texto cantado e as melodias (compostas por Lucchesi e Terra) destacam o ouro da sua tessitura, aproveitando os graves calorosos e a potência da sua voz”, completa Anna Toledo.
O elenco principal de Tarsila, a Brasileira foi definido por meio de escolhas de Claudia e a equipe técnica. Assim, ali estão artistas já vistos em outras montagens da atriz como Ivan Parente (que vive Menotti Del Picchia), Keila Bueno (Anita Malfatti), Carol Costa (Pagu), Dennis Pinheiro (Mario de Andrade), Reiner Tenente (Luís Martins) e Liane Maya (Olívia Guedes Penteado).
Leia o depoimento de Anna Toledo ao Canal MF sobre a criação das letras e música de Tarsila, a Brasileira:
“Depois de passar tanto tempo com Tarsila – lendo a seu respeito e lendo o que ela própria escreveu (as correspondências, os muitos artigos para o jornal e seus poucos poemas) -, arrisco dizer que ela nunca foi tímida (ela adorava uma festa!), mas bastante reservada na sua vida pessoal – e muito séria a respeito do próprio trabalho.
‘Séria e reservada’ não costumam ser as principais características de um protagonista de musical, nós sabemos. Mas não fazia nenhum sentido transformar a Tarsila numa princesa da Disney. Ela é mulher multidimensional. E sua vida é revolucionária em muitas dimensões.
No âmbito artístico, ela criou uma obra que a princípio traduziu a busca dos Modernistas, até o grande salto estético que foi a Antropofagia.
E na sua vida particular, Tarsila fez absolutamente tudo o que quis, sem permitir que as convenções sociais a impedissem: abandonou um casamento infeliz para voltar a estudar, namorou quem quis (ficou anos namorando Oswald escondida até conseguir anular o primeiro casamento), virou comunista e foi pra Rússia, desvirou comunista, virou escritora, ‘amigou’ com um homem 21 anos mais novo e com ele viveu por dezoito anos, tudo isso sendo artista e mulher independente.
Talvez Tarsila soubesse desde sempre que uma mulher independente incomoda muita gente. E talvez ela não fizesse questão de alardear sua independência – por temperamento, ou por estratégia, talvez um pouco de cada. Nunca saberemos.
O que sabemos – e o que exploramos no palco – foi a sua tremenda habilidade de chegar onde queria sem bater de frente com ninguém, sempre através da festa e do encantamento. Talvez o superpoder de Tarsila fosse justamente a capacidade de se encantar infinitamente com as possibilidades do mundo e de encantar o mundo à sua volta.
Esse superpoder também explica uma vida que ao longo de mais de oito décadas não perdeu seu fascínio.
É este o fascínio que buscamos retratar, esta mágica que combina tanto com o teatro musical: uma vida pelos olhos encantados e encantadores de Tarsila.
Quanto às canções, a questão principal foi ‘em que estilo compor’? No caso do Tarsila, as letras foram escritas antes das músicas, porque eu e o Possi começamos a trabalhar no texto durante a pandemia e todo o contato era muito restrito, não era possível trabalhar junto com os compositores ao mesmo tempo.
Levamos um bom tempo discutindo sobre quais seriam as referências musicais que usaríamos. Decidimos seguir o exemplo dos Antropofagistas e usar todas! Na trilha, o espectador vai reconhecer a música popular brasileira da época (dos anos 20 até os anos 70), a música clássica que permeava os ambientes da vida de Tarsila (sua mãe e ela própria eram pianistas clássicas virtuoses), a música dos compositores modernistas e seus ‘descendentes’ tropicalistas, e também a linguagem popular contemporânea. Tem tudo a ver com o grande mashup de referências que foi o Modernismo.
E isto aparece também na direção musical do Guilherme Terra, brilhantemente alinhada com esse conceito.
Escrever pensando na voz da Claudia Raia é sempre bom, porque ela é uma atriz que valoriza muito o texto cantado. O fato dela ter uma voz rara de contralto só torna tudo mais especial. O bom de ser um espetáculo original é que as músicas são compostas já com boa parte do elenco em mente. Assim, o público verá todos os solistas cantando canções que valorizam sua originalidade vocal. No caso dos solos da Claudia, as melodias (compostas pelo Tony Lucchesi e pelo Guilherme Terra) valorizam o ouro da sua tessitura, aproveitando os graves calorosos e a potência da sua voz.”
Serviço
Tarsila, a Brasileira
Teatro Santander. Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041.
Quintas e sextas-feiras, 20h. Sábados e domingos, 16h e 20h. R$ 50 / R$ 300
Patrocínio Zurich Santander
Até 26 de maio