O melhor do teatro está aqui

1

Princípios de democracia no fundo do mar ilustram peça da Cia. La Leche

Sinopse

“Mar Fantasma”, com direção de Cris Lozano, estreia no Sesc Bom Retiro com a intenção de falar alegoricamente com as crianças sobre os perigos do autoritarismo, lançando mão de uma estética criativa, recheada de projeções mapeadas, para dar a impressão de que os atores estão mesmo mergulhados no universo marítimo

Por Dib Carneiro Neto (publicada em 14 de novembro de 2925)

É sempre curioso observar como o teatro para crianças cria seu jeito todo especial, com artimanhas, estripulias, subterfúgios, alegorias, metáforas, truques e armadilhas, quando quer falar sobre temas mais sisudos e muito necessários. Esse é o lance legal de ver uma peça infantil: reparar na criatividade imaginativa que teve de ser tramada pela equipe para que resultasse em um espetáculo eficiente, poético e envolvente.

Falo isso a propósito da estreia de Mar Fantasma, neste fim de semana, no Sesc Bom Retiro, com a premiada Cia. La Leche. Eles quiseram falar da contraposição entre ditadura e democracia e, para tanto, os personagens foram parar… no fundo do mar. Nada de palanques, debates políticos, aulas de História – em vez disso, as pinceladas pueris nas lições de espírito democrático são transmitidas sob águas salgadas, no mundo mágico de criaturas e seres marítimos.

Ana Paula Lopez e Alessandro Hernandez em Mar Fantasma. Foto Pipe Oliveira

Alessandro Hernandez, o dramaturgo da peça, também em cena como ator, comenta sua escolha: “Fatos foram inspiração, mas é claro que, para crianças no teatro, precisamos transformar fatos em narrativas alegóricas. Por isso, criamos um ambiente onde duas crianças estão no fundo do mar e lidam com seus esquecimentos e com o não saber como foram parar ali. Diante disso, se deparam com o fantástico e a beleza da diversidade dos bichos que vivem por lá. Mas, mesmo diante dessa beleza, há um ser que quer controlar, oprimir e mandar. E as duas crianças enfrentam isso e encontram na força do coletivo e da liberdade uma forma de vencer essa força opressora e assustadora.”

Ele prossegue, nos contando agora qual foi a sua maior dificuldade no texto: “Para chegar à democracia, a gente passou pela ditadura. Foi essa a maior dificuldade: criar uma dramaturgia sobre a ditadura, a existência dessa forma opressora e violenta que deixou tantas marcas na história do nosso país. Muitos de nós fomos crianças durante a ditadura militar. Uns foram diretamente afetados, outros nem se deram conta”. Foi assim que ele optou pelas alegorias do fundo do mar, facilitando com isso a compreensão das crianças, que sempre preferem recursos fantasiosos a pregações didáticas.

Ana Paula Lopez em outra cena de Mar Fantasma. Foto Pipe Oliveira

Na ficha técnica de Mar Fantasma, além de Alessandro na dramaturgia, temos Ana Paula Lopez (também no elenco) assinando como dramaturgista. Muita gente não entende por que um espetáculo precisa de dramaturgo e de dramaturgista. Alessandro Hernandez nos explica como se deu entre eles essa dinâmica: “Nesse processo de construção de textos que eu vivencio na Cia La Leche, há sempre muitas interferências vindas tanto da direção como da parceria em cena. Isso é enriquecedor, porque o que a gente escreve, muitas vezes, na hora do jogo da cena, precisa ser transformado. E a gente faz muito isso. Desta vez, a Ana Paula Lopez assumiu esse papel como uma espécie de provocadora do texto que estava sendo criado. Eu não escrevi o texto inteiro previamente aos ensaios. Escrevi uma parte, fui provocado e a partir dessas provocações fui alinhavando novos caminhos. Quando começo a escrever, não sei muito bem para onde vou com a história. É a história que me conduz. E a dramaturgista fica olhando esse caminho e fazendo apontamentos que auxiliam nesse direcionamento. Isso acontece muito também na minha parceria com a diretora Cris Lozano”.

O trabalho de direção de Mar Fantasma teve de contar, desta vez, para caracterizar o fundo do mar, com muitos recursos audiovisuais e tecnológicos, por assim dizer, fazendo da peça talvez a mais estética dentre todas as que a companhia já montou. Será que a diretora concorda com isso? “Os espetáculos da nossa Cia Leche sempre fazem essa opção de materializar o lugar de onde a gente está falando”, diz Cris Lozano.

“Em Malala, era uma escola; em Existo!, era a casa do menino; Vambora tinha três lugares diferentes, um deles dentro da barriga de uma baleia, então é sempre assim. Não poderia ser diferente agora, sobretudo porque estamos falando do fundo do mar. Nesse sentido, ficou um espetáculo bastante estético mesmo, porque temos várias cenas com videomapping. Os desenhos projetados, todos criados pelo Marco Lima, dialogam diretamente com a dramaturgia. Funcionam como uma outra camada de personagens, os seres marinhos, que acabam criando uma narrativa própria dentro da cena. E vira uma camada poética, o que nos levou a chamar a peça de poema visual submerso”, diz a diretora.

Alessandro Hernandez é ator e autor de Mar Fantasma. Foto Pipe Oliveira

Foi desafiador. Cris Lozano confirma essa provocação adicional da estética em Mar Fantasma. Ela acrescenta: “O que tem diferente desta vez, na minha direção e no espetáculo, é justamente a oportunidade de lidarmos com essa projeção mapeada, em 3D. Foi um desafio para os atores ‘conversarem’ com essas imagens tecnológicas – a materialidade do corpo do ator em comunhão com esse mundo projetado artificialmente. Isso é incrível como estímulo à imaginação da plateia. Todos terão de acreditar que os atores estão mesmo no fundo do mar.”

Impossível não observar também, em Mar Fantasma, que Alessandro e Ana Paula estão mais uma vez juntos em cena, comprovando a química longeva entre eles. “Estar com a Ana Paula Lopez em cena é um presente delicioso”, declara Alessandro Hernandez. “Eu aprendo e me divirto muito com ela. A gente está junto em cena no quarto espetáculo da Cia La Leche. A intimidade e o prazer da cena já existem, mas é claro que a cada novo trabalho é algo novo que precisamos descobrir. É uma nova relação, é uma nova situação. E isso a gente descobre juntos no exercício do fazer e do experimentar. Desta vez, imersos no fundo do mar, como criar um corpo que aponte isso? E como a gente se relaciona debaixo d’água? São construções novas que são criadas a cada novo espetáculo.”

Mar Fantasma também conta com o luxo de ter trilha sonora ao vivo – formada por ruídos subaquáticos, vozes, respirações e batidas eletrônicas sutis  – executada por Camila Couto, que será a  DJ Alga Marinha.

Vamos lá mergulhar nessa imaginação? Se quiser, leve toca, snorkel e boia.

Serviço

Mar Fantasma

Sesc Bom Retiro. Alameda Nothmann, 185.

Domingos, 12h. Dias 15/11 e 20/11 (feriados), 12h. Sessões extras: 19/11 (quarta-feira), 15h; e 13/12 (sábado), 12h. R$ 40

Até 14 de dezembro (estreia dia 15 de novembro)

[acf_release]
[acf_link_para_comprar]

Ficha Técnica

[acf_ficha_tecnica]

Serviço

[acf_servico]