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Christiane Jatahy mostra a nova ascensão do fascismo mundial em “A Hora do Lobo”

Sinopse

Peça, que une linguagem teatral com a cinematográfica, inicia a Trilogia do Horror e nasceu a partir da eleição de Bolsonaro em 2018

Por Ubiratan Brasil

Romper fronteiras artísticas sempre foi um desafio para a encenadora Christiane Jatahy. Seu trabalho para o palco não se encaixa na simples denominação de “peça teatral”, uma vez que dialoga especialmente com as técnicas do cinema, de modo que a fusão resulta em algo híbrido, mas extremamente consistente. E, mesmo passando temporadas longe do Brasil (desde 2016, vive mais tempo na Europa e, há quatro anos, se estabeleceu em Paris), ela não desvia a atenção das mazelas nacionais.

É o que inspira A Hora do Lobo, peça que estreou no festival de Avignon de 2021 e agora chega ao Teatro Anchieta, do Sesc Consolação. Trata-se da primeira parte da Trilogia do Horror, com que Jatahy pretende dissecar a origem da nova ascensão do fascismo, em especial no Brasil, com a eleição presidencial de 2018.

“O fascista quer a destruição do outro porque não se assemelha a ele, o que traz a questão do imigrante, visto como um inimigo a ser dizimado”, conta Jatahy, que recebeu o Leão de Ouro em Veneza em 2022 pelo conjunto de sua trajetória artística. A encenadora se inspirou no filme Dogville (2003), de Lars Von Trier, para abordar os mecanismos do fascismo. “Escolhi esse longa porque mostra como o fascismo nasce a partir de relações de amizade, entre amigos.”

Cena de A Hora do Lobo, de Christiane Jatahy, que une técnicas do teatro com as do cinema. Foto Magali Dougados

Assim, no cinema, a personagem Grace (Nicole Kidman) foge de gângsteres e chega à cidade de Dogville, nos Estados Unidos, onde é recebida com desconfiança pelos moradores. A civilidade local aos poucos é trocada por uma série de abusos cometidos contra a moça, com os habitantes revelando todo seu sadismo e crueldade. Von Trier usa elementos do teatro na cenografia, com as casas e ruas da cidade simplesmente representadas por linhas desenhadas no chão.

Com um elenco misto suíço-francês-brasileiro, A Hora do Lobo surge como uma espécie de continuação, na qual a brasileira Graça (interpretada pela atriz carioca Julia Bernat) foge de um país dominado por um governo fascista envolvido com milícias. Chega a um teatro de um país indeterminado, onde encontra os mesmos personagens do longa que agora tentam se redimir das atrocidades anteriores. Eles querem alterar a narrativa a fim de provarem que estão dispostos a aceitar “o que vem de fora”.

É assim que Graça é convidada a participar do experimento sem saber ao certo as consequências. “O objetivo é continuar a reflexão sobre a intolerância e as raízes do ódio em uma comunidade e mostrar como isso não muda. A mulher continua sendo explorada, o que nos obriga a seguir atentos e fortes, pois o fascismo saiu do armário.”

Cena de A Hora do Lobo, de Christiane Jatahy. Foto Magali Dougados

Eles querem alterar a narrativa a fim de provarem que estão dispostos a aceitar “o que vem de fora”. É assim que Graça é convidada a participar do experimento sem saber ao certo as consequências.

De fato, o público acompanha ao vivo a repetição de violências que persistem e voltam à superfície no presente. E com atores e atrizes em cena, filmando enquanto atuam no filme e no teatro, e se relacionam uns com os outros, com a música sendo feita ao vivo e discutindo a montagem do novo Dogville em busca de não repetir o mesmo ciclo eternamente.

O resultado continua fascinante: o espectador não se limita a assistir a uma encenação, mas a criação de uma realidade. Com isso, ao utilizar câmeras que registram tudo ao vivo, Jatahy novamente subverte o conceito de cinema: o que se vê não é o registro de algo passado, consumido, mas possibilita a sensação de estar presenciando algo em tempo real.

Cena da peça A Hora do Lobo, de Christiane Jatahy. Foto Magali Dougados

O segundo espetáculo da Trilogia do Horror chama-se Antes que o Céu Caia e estreou no Schauspielhaus Zurich, na Suíça, em outubro de 2021. Aqui, Jatahy trata da violência da masculinidade tóxica e seu poder político ao unir Macbeth de Shakespeare com A Queda do Céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Uma da cena relembra um momento vergonhoso da política brasileira ocorrida em 2009 e que ficou conhecida como a Farra dos Guardanapos. Foi quando o então governador do Rio, Sérgio Cabral, organizou uma festa em Paris para celebrar o recebimento da Legião de Honra, do governo francês.

A festa aconteceu no salão no Hotel de la Païva, na Avenida Champs-Élysées, e, no auge da animação, secretários estaduais e empresários puseram guardanapos na cabeça e fizeram um trenzinho da alegria. A peça, por ora, não será encenada no Brasil.

E a trilogia se fecha com com Depois do Silêncio (que estreou no Wiener Festwochen, em Viena, em junho de 2022) e trata das questões da raça e das estruturas pós-coloniais que ainda persistem, impedindo a necessária reparação histórica. Inspirada no aclamado romance Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, e também no documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, a peça traz um elenco essencialmente feminino e brasileiro para mostrar as vozes de três mulheres no contexto da luta da sua comunidade por terra, liberdade e identidade. Ainda não há previsão de estreia no Brasil, pois outra companhia já detém os direitos nacionais do livro de Itamar.

Serviço

A Hora do Lobo

Teatro Anchieta – Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245

Quarta a sábado, 20h. Domingos e feriado, 18h. R$ 50

Até 15 de outubro

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Ficha Técnica

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Serviço

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