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Atriz indígena, Zahy Tentehar entende a atuação como um estado de presença

Sinopse

A artista estreia no Sesc Ipiranga o solo autobiográfico “Azira’i”, centrado em sua relação com a mãe, a primeira mulher pajé da reserva de Cana Brava

Por Dirceu Alves Jr.

Em suas postagens no Instagram, a atriz Zahy Tentehar usa repetidas vezes uma legenda que diz “Eu não estava preparada, mas já me sinto pronta”. A frase chama a atenção dos seus quase 70 mil seguidores, e a artista indígena, de 34 anos, nascida e criada na reserva de Cana Brava, no Maranhão, afirma que se trata de uma perfeita tradução do seu entendimento de vida. “Sou assim mesmo, nunca preparada, mas sempre entregue às emoções, acredito que posso fazer e faço”, justifica. “A atuação, para mim, é um estado de presença.”

Indicada ao Prêmio Shell carioca de melhor atriz, Zahy é a protagonista do espetáculo Azira’i, dirigido por Denise Stutz e Duda Rios, que, depois de temporada no Rio de Janeiro, estreia no Teatro do Sesc Ipiranga nesta sexta, 8. O solo autobiográfico e musical é centrado na relação da artista e sua mãe, Azira’i, a primeira mulher pajé da aldeia maranhense, que, com seus conhecimentos sobre o mundo espiritual, usava as plantas, as mãos e o canto para a cura, o que lhe valeu o título de pajé suprema.

“O povo indígena é muito machista e isso faz parte da nossa cultura, mas minha mãe sempre ocupou um lugar fora dos padrões”, conta a filha, sobre Azira’i, que morreu em 2021. “Ela não tinha essa vaidade feminina de se olhar no espelho, usava camisas, shorts masculinos, andava descalça, o seu interesse era na espiritualidade.”

A atriz indígena Zahy Tentehar na peça Azira’i. Foto Daniel Barboza

Zahy, que construiu a dramaturgia junto da diretora Denise Stutz, percorre a história sob diferentes pontos de vista, como os dela própria, da mãe e de uma narradora, cantando ainda lamentos aprendidos na infância e canções originais compostas em parceria com Duda Rios, sob a direção musical de Elísio Freitas.

Parte do espetáculo é falado em ze’egete, a língua nativa da artista, e outra em português, idioma que ela só começou a dominar aos 10 anos. “O espetáculo tem técnica, ensaio, memorização de texto, mas, acima de tudo, é um ritual, porque toda arte, para mim, é um ritual”, define. “A cultura indígena é genuinamente teatral e, como aprendiz do que chamo de teatro da cidade, vejo o quanto já era uma atriz antes.”

Caçula entre 32 irmãos – a maioria da parte do pai –, Zahy foi registrada aos 7 anos e, nesta época, começou o que chama de uma vida dupla entre a aldeia e a cidade de Barra do Corda, onde ficava a escola, a três horas de distância de carro ou moto em uma estrada de chão. O trajeto, no entanto, era feito a pé e levava quase o dobro do tempo, porém, em momento algum, surtia o efeito de sofrimento para a menina e seus irmãos. “A gente assava um peixe ou uma galinha no caminho, tomava banho de rio e cultivava o prazer de observar a natureza que foi perdido com a chegada do carro e da moto”, conta. “Eu me lembro até hoje quando uma irmã que morava na cidade me levou de presente um sabão em barra, devia ter uns 9 anos, e foi a primeira vez que lavei meus cabelos com sabão.”

A atriz indígena Zahy Tentehar em cena da peça Azira’i. Foto Leo Aversa

Em 2010, Zahy percebeu que aquela rotina parecia insuficiente diante dos seus potenciais e decidiu tentar a sorte do Rio de Janeiro. Ganhou R$ 350 em um trabalho como agente de saúde, e o pai emprestou outros R$ 100,00 para inteirar a passagem do ônibus que a traria à cidade grande. Nas mãos, levou duas sacolas com mudas de roupa, um galeto frito e dois litros de água – o suficiente para se manter em mais de 50 horas de trânsito.

No Rio, morou na Aldeia Maracanã, ocupação indígena próxima ao famoso estádio, viveu de doações e conseguiu emprego como caixa de supermercado. “Eu não terminei o ensino médio, o que tornava mais difícil na hora de arrumar emprego”, conta.

Em uma manifestação contra a demolição da Aldeia Maracanã pelo governo do estado do Rio de Janeiro, Zahy pegou o microfone e demonstrou a sua indignação em ze’egete e português. O discurso viralizou no Youtube e foi visto pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, que formava o elenco da minissérie Dois Irmãos, adaptação do romance de Milton Hatoum, em 2016. “Eu não sou atriz, nem sei como se faz isso”, respondeu ela, no contato feito através da antiga rede social Orkut.

Convencida a encarar o desafio, Zahy fez um teste que incluía a interpretação de uma canção de ninar na sua língua original e uma cena em que reagia a um suposto estupro. O papel de Domingas, um dos pilares da trama, era seu. “Modéstia à parte, na canção de ninar, entendi que podia dominar aquilo e até demorei um pouco a entender como aquele trabalho funcionava, mas sempre me senti à vontade, aberta e obsessiva em relação às minhas emoções, que, acho, aliás, a minha principal característica.”

Com Macunaíma – Uma Rapsódia Musical (2019), Zahy estreou no teatro sob a direção de Bia Lessa e, nos camarins da produção, em conversas com o colega de elenco Duda Rios, surgiram as ideias iniciais sobre Azira’i. “Não via sentido em pesquisar, me aprofundar em leituras, para fazer a minha mãe, eu me lembro da voz dela, do jeito de caminhar e busco essa mulher em mim”, explica. “Por isso, digo que tanto o espetáculo como meu trabalho são totalmente sensoriais”, completa.

Uma das provas de que o método da atriz funciona é sua participação na série Cidade Invisível, da Netflix, em que representou a entidade Maria Caninana, que se transforma em cobra. “Eu passei dias vendo vídeos e filmes sobre cobras para entender como elas se mexiam, como poderia criar em mim essas imagens.”

A atriz indígena Zahy Tentehar na peça Azira’i. Foto Leo Aversa

Para a artista, o que interessa é buscar o corpo sensorial e isso ela aprende nas vivências pessoais. Seu pai e sua mãe ficaram cegos muito cedo, logo foi necessário explorar outros jeitos de comunicação. Zahy – que significa lua – é mãe de Kwarahy – que pode ser traduzido como sol –, um menino autista, que, agora, aos 6 anos, começa a falar. “Para chamar a atenção do meu filho, desenvolvi métodos que nenhuma faculdade de artes cênicas me ensinaria”, diz ela, que mora em Copacabana, no Rio de Janeiro, com o garoto, em um apartamento em que a vista dos fundos dá para uma floresta. 

Em abril, Zahy começará a ser vista no elenco de No Rancho Fundo, próxima novelas das seis da Globo, que começa a gravar na segunda quinzena deste mês. “Eu sei quase nada da personagem, mas, como sou um corpo indígena, provavelmente vou flertar com essa questão”, desvia do assunto.

Em 2025, a atriz vai dar um salto ambicioso e estrear como cineasta em uma nova adaptação para as telas de Macunaíma, baseada no livro de Mário de Andrade, em que vai dividir a direção com Felipe Bragança. O ator indígena Adanilo será o protagonista.

A artista reconhece que o espaço para o seu povo ainda é muito limitado na mídia e que se trata do começo de um processo que levará tempos para ampliar debates e derrubar preconceitos. “Eu não estou aqui para dizer o que é certo ou errado, estou aqui para negociar e aprender junto com todo mundo”, avisa. “O problema é quando aparece alguém querendo nos ensinar coisas quem nem ele sabe.”   

Serviço

Azira’i

Teatro do Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga.

Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 50.

Até o dia 31. A partir de sexta (8). Sessões extras nos dias 22, 23 e 30, às 15h. 

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Ficha Técnica

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Serviço

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