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“As Aves da Noite” é um grito contra a barbárie e o fascismo

Sinopse

Peça escrita por Hilda Hilst conta a história real do padre franciscano Maximilian Kolbe que, no campo de concentração nazista de Auschwitz, apresentou-se voluntariamente para ocupar o lugar de um judeu sorteado para morrer

Por Ubiratan Brasil

Entre os inúmeros crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, um dos mais cruéis envolvia punição contra “traidores”: quando algum prisioneiro de um campo de concentração conseguia fugir, eram sorteados detentos que conviviam com o fugitivo para serem confinados em um espaço fechado, com apenas uma réstia de luz. Ali, ficavam sem receber comida ou água, tampouco algum tipo de cuidado. Em poucos dias, praticamente todos morriam, definhados.

Foi esse o ponto de partida para a poeta Hilda Hilst (1930-2004) escrever a peça As Aves da Noite, em 1968, que estreia sexta-feira, dia 24, no Teatro Cacilda Becker e depois vai ocupar outros espaços (veja abaixo). E ela se inspirou em um personagem real: o padre franciscano polonês Maximilian Kolbe (1894-1941) que, no campo de concentração de Auschwitz, apresentou-se voluntariamente para ocupar o lugar de um judeu sorteado para morrer no chamado “porão da fome”. “Ele incomodava muito os nazistas com sua fé inabalável”, observa Marco Antônio Pâmio, que vive Kolbe na peça. “Como todo líder de alguma forma de expressão que perturba quem está no poder, o padre precisava ser eliminado pelos alemães.”

Marco Antônio Pâmio e Regina Maria Remencius em As Aves da Noite. Foto Priscila Prade

Como sobraram apenas registros biográficos de Kolbe (que não morreu naquele porão, onde ficou 21 dias enclausurado, sendo depois assassinado com uma dose letal de ácido fênico), Hilda Hilst criou os outros personagens que são aprisionados. Assim, ao lado do religioso, estão um carcereiro (Marat Descartes), um poeta (Fernando Vítor), um estudante de biologia (Rafael Losso) e um joalheiro (Walter Breda). O feroz oficial da SS (Marcos Suchara) e seu auxiliar Hans (Wesley Guindani) ainda obrigam uma mulher (Regina Maria Remencius), que é obrigada a executar o terrível serviço de limpar os fornos onde os judeus são mortos, a também ajudar na retirada dos corpos do porão. A montagem conta ainda com a participação de Heloisa Rocha, com a garota estuprada por Hans.

As Aves da Noite, idealizada pelo produtor Fábio Hilst (primo em segundo grau da escritora), teve sua primeira temporada apresentada virtualmente, durante a pandemia da covid-19, e conquistou o prêmio APCA de Melhor Espetáculo Virtual, em 2022. Para esta temporada presencial, o diretor Hugo Coelho criou uma atmosfera mais asfixiante para criticar o fascismo que usa a violência como instrumento de ação política. Assim, os prisioneiros aparecem isolados, confinados em gaiolas como um signo, uma alusão à prisão onde a história se passa. “A primeira coisa que os governos totalitários e ditatoriais fazem ao prender alguém é destituí-lo de sua dignidade e submetê-lo ao sofrimento extremado, e isso os nazistas fizeram com requintes inimagináveis de crueldade”, comenta o diretor.

Rafael Losso em cena de As Aves da Noite. Foto Priscila Prade

Segundo ele, a proposta de concepção de Hilda é muito clara, colocando as personagens em estado de reflexão sobre suas próprias condições no confinamento. A leitura que a autora faz dos aspectos éticos e humanos passa por questionamentos sobre Deus, o mal e a crueldade. “Não pensei em um cenário realista, reconstruindo Auschwitz. O principal sentido aqui é a discussão sofre o que os personagens sofrem a partir do racismo, do preconceito.”

As gaiolas, portanto, mostram metaforicamente como ainda hoje a humanidade vive isolada em seu território, em sua bolha, graças ao desinteresse sobre o semelhante. “Auschwitz ainda é uma ferida aberta, não cicatrizada, como representação da opressão”, comenta Coelho, para quem a montagem de As Aves da Noite busca elucidar a humanidade e a densidade contidas no texto, mergulhando nas possibilidades inesgotáveis do drama para emergir na poética da tragédia.

Para viver o padre Maximilian Kolbe, Pâmio fez muitas pesquisas. “Aos poucos, fui descobrindo esse homem e a recriação dele que apresentamos é mais amenizada do que realmente foi vida dele na prisão”, conta o ator, que via na fé do religioso sua principal fonte de vida e resistência. “Ele se doava muito e, como tinha o poder da comunicação, foi canonizado em 1982, pelo Papa João Paulo II e hoje é considerado padroeiro dos jornalistas e radialistas e protetor da liberdade de expressão.”

Fernando Vitor em As Aves da Noite. Foto Heloisa Bortz

Kolbe se destaca como ponto de equilíbrio em meio ao desespero daqueles homens condenados a morrer lenta e cruelmente. “Como estudante de biologia, meu personagem sabe como funciona o processo do final da vida, da degradação do corpo”, observa Rafael Losso, que tem uma das frases mais significativas da peça: logo que os autofalantes apresentam o trecho de um discurso proferido por Adolf Hitler, ele fala que o líder nazista “é o reverso de todos eles”. “Hitler se julgava um deus, com poderes ilimitados.”

Em uma entrevista, Hilda Hilst contou que, com a peça, pretendeu ouvir o que foi dito na cela da fome, em Auschwitz. “Se os meus personagens parecerem demasiadamente poéticos é porque acredito que só em situações extremas é que a poesia pode eclodir viva, em verdade. Só em situações extremas é que interrogamos esse grande obscuro que é Deus, com voracidade, desespero e poesia”, disse ela.

Walter Breda em cena de As Aves da Noite. Foto Heloisa Bortz

Curiosamente, o personagem do poeta, além de ser o mais jovem, é quem mais sofre e é o primeiro a sucumbir de fome e sede. “Ele vive o processo de degradação rapidamente”, comenta Fernando Vítor. “A poesia é a primeira vítima em uma situação extrema.”

Nesse sentido, o joalheiro e suas especulações sobre o poder das pedras, preciosas ou não, busca aproximar a poesia para o dia a dia. “Ele só consegue se comunicar com o mundo por meio das pedras”, fala Walter Breda, também fã desses minerais cuja existência pode durar séculos. “Hilda também tinha fascínio pelas pedras, a ponto de mandar fazer uma mesa com esse material para ter em casa.”

Marat Descartes em As Aves da Noite. Foto Priscila Prade

A poeta também reservou um papel fundamental para a Mulher, encarregada de cuidar da limpeza do porão após as mortes. “Ela é igual aos prisioneiros, mas é mais infeliz, pois testemunha o que acontece com todos que estão no campo de concentração”, comenta Regina Maria Remencius, cujo personagem executa o terrível trabalho incumbido pelos nazistas porque tem um desejo de sobrevivência. “Ela vive no limite entre a sanidade e a loucura, mas, ao mesmo tempo, é um exemplo da força das mulheres.”

Quem mais contesta a Mulher, criticando suas mãos que recolhem cadáveres, é o Carcereiro que, prisioneiro, vive a frustração de ter perdido o poder. “Talvez por isso ele seja o mais niilista de todos, embora pareça ser o mais simplório”, observa Marat Descartes, cujas falas são as mais certeiras sobre a situação sem esperança em que vivem os prisioneiros. “Apesar de sua ferocidade, o Carcereiro traz também uma carga poética que marca o texto da Hilda.”

Marcos Suchara em As Aves da Noite. Foto Priscila Prade

Do lado do poder, o oficial da SS e seu ajudante Hans personificam o lado mais sombrio da alma humana. Um desafio para os dois atores. “Falar as barbaridades proferidas pelo oficial é difícil”, observa Marcos Suchara, que se impõe por gritos e pelo estalar de um chicote, chamando os prisioneiros de porcos. “Só o ressentimento pode justificar esse ódio que perpetua o terror entre os prisioneiros.”

Mais enigmático porque quase não tem falas, Hans é o fiel servidor. “Enquanto o oficial é mais irônico, ele é mais direto, pois faz o serviço sujo. E ambos sentem prazer sobre o poder que têm diante da vida dos prisioneiros”, conta Wesley Guindani. “Mas os agentes se impressionam com a resiliência do padre, que aparece como um transgressor.”

Wesley Guindani está na peça As Aves da Noite. Foto Heloisa Bortz

Segundo Coelho, Hilda preferiu não destacar algum traço de humanidade nos nazistas para ressaltar o exercício da crueldade. “O discurso racional não dá conta da realidade. A arte tem o papel de traduzir esse discurso como uma segunda realidade que passa pela razão, mas também pelo sensorial e pela emoção”, reflete o encenador.

O cenário, que traduz o cárcere com gaiolas humanas, foi concebido pelo diretor. O figurino (de Rosângela Ribeiro) faz alusão aos uniformes de presidiários, reforçando a imagem do encarceramento. A iluminação (de Fran Barros) dá foco a cada personagem e reforça o clima denso e claustrofóbico do ambiente, privilegiando o espaço teatral.

Já a trilha sonora, assinada por Ricardo Severo, traz uma canção original do texto que remete à tradição judaica, cantada pelas personagens, e segue a mesma orientação da iluminação. “A trilha foi criada para se unir à montagem e resultar em algo novo. Não está lá apenas para sublinhar a trama”, conta Severo, que vai lançar o trabalho musical nas ferramentas especializadas em canções.

Serviço

As Aves da Noite

Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295 – Lapa. Tel.: (11) 3864-4513. Sextas e sábados, 21h. Domingos, 19h. De 24 de maio a 2 de junho

Teatro Arthur Azevedo. Av. Paes de Barros, 955 – Alto da Mooca. Tel.: (11) 2604-5558. De 6 a 9 de junho: Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h. De 14 a 16 de junho: Sexta e sábado, 21h. Domingo, 19h.

Teatro Paulo Eiró. Avenida Adolfo Pinheiro, 765 – Santo Amaro. Tel.: (11) 5546-0449. De 20 a 23 de junho: Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h. De 28 a 30 de junho: Sexta e sábado, 21h. Domingo, 19h.

Ingressos Gratuitos. Bilheterias dos teatros: 1h antes das sessões.

Ingressos antecipados: Sympla – www.sympla.com.br.

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Ficha Técnica

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Serviço

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