Com bonecos, máscaras e uma trilha muito especial, o infantil “Azul”, da Artesanal Cia. de Teatro, retrata com poesia uma família às voltas com a chegada de um bebê com transtorno de espectro autista
Por Dib Carneiro Neto
A responsabilidade é grande ao se produzir para crianças um espetáculo que fala do TEA, o transtorno de espectro autista. Depois de 28 anos de trajetória e 15 espetáculos na carreira, a Artesanal Cia de Teatro, do Rio de Janeiro, se propôs a encarar o desafio. O grupo prima pela delicadeza, poesia cênica e o cuidado rigoroso na realização de cada item de suas montagens. Com Azul, a peça que fala de autismo, tudo foi meticulosamente pensado e os cuidados redobrados. Resultado: pelas três cidades por onde já passou (Belo Horizonte, Brasília e Rio), as sessões foram todas invariavelmente lotadas, com filas de espera.
Agora estão em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil, onde ficam até 25 de fevereiro. Com narração de Cleiton Rasga e um elenco formado por Alexandre Scaldini, Brenda Villatoro, Bruno de Oliveira, Carol Gomes, Marise Nogueira e Tatá Oliveira, Azul tem potencial para agradar público de todas as idades. “Não imaginávamos que o público receberia esta história com tanta emoção”, comenta o diretor Henrique Gonçalves. “Claro que há a qualidade do trabalho, que sempre buscamos apresentar em nossas peças. Mas a história é também muito emotiva e envolvente. Foram três temporadas inesquecíveis até agora! A gente costuma dizer que Azul é um presente que recebemos. Afinal, foram quase três anos fora do circuito teatral. Azul é o nosso primeiro projeto depois da pandemia.”
Havia grande ansiedade pelo público paulistano e o primeiro fim de semana parece ter confirmado a plena aceitação do espetáculo mais uma vez. “São Paulo sempre nos acolheu”, diz Henrique. “Para nós, não apenas o público de São Paulo é tão especial, quanto a própria cidade. Vai ser lindo terminar esse primeiro ciclo por aqui. Só não somos mais paulistas, porque o nosso sotaque chiado entrega a nossa origem carioca.”
Só no segundo ato
Azul é uma história sobre uma família que descobre, aos poucos, que tem um integrante neurodivergente. Curiosamente, o autismo é introduzido na peça apenas no segundo ato, quando o público já está envolvido com a história da família. “Para quem não sabe nada sobre o espetáculo, há uma certa surpresa”, declara Henrique Gonçalves. “Todo o aspecto lúdico da peça, a representação por uso de bonecos e máscaras, constrói um universo próprio para o espetáculo.”
Outro aspecto muito louvável da montagem é que o tema não é simplesmente jogado na trama. Para o público neuroatípico, a peça foi pensada em ser acessível. Henrique Gonçalves nos conta tudo: “O som no palco é um pouco mais baixo do que o normal, a luz não tem mudanças bruscas ou dramáticas, o tempo da narrativa é mais dilatado, para que a plateia possa contemplar a peça, além de apenas seguir a narrativa. Para isso, tivemos a consultoria da Cris Muñoz, que é atriz, palhaça, escritora e que tem seu doutorado em arte e inclusão. Ela é autista nível 1 de suporte e tem uma filha adolescente, também autista, no nível 3 de suporte.” E ele arremata: “Azul foi encenado com muito carinho, muito respeito e atenção. E o público sente isso. Não há romantização do tema e nem um olhar capacitista e sim uma história narrada com muito afeto. Muitas pessoas do público disseram que Azul é um abraço. Quer elogio maior?”
Tempo que vira personagem realista
Vale muito a pena prestar atenção no papel do personagem Tempo. A Artesanal fez uma escolha de narrativa calcada bastante em bonecos e máscaras, mas, conforme nos conta o diretor, o Tempo está ali como o único personagem sem máscara, mais realista. “Foi um acerto. Ele está numa frequência que se relaciona com o humano.”
Por causa desse tratamento tão especial ao personagem, ele ganhou até um cuidado muito diferenciando no que diz respeito à trilha sonora, assinada na ficha técnica por Gustavo Bicalho, que também é codiretor e codramaturgo. Ele escreveu a peça em parceria com Andrea Batitucci. Gustavo explica a relação da trilha com o Tempo: “Ele é marcado não só pela presença física do ator Tatá Oliveira, como pelo tic-tac do relógio, ou a contagem do tempo da música por meio de um metrônomo. Por esse lado, a trilha é também narrativa, porque a menina Violeta – irmãzinha mais velha do menino autista Azul – aprende a tocar piano (tem o sonho em ser uma concertista) e percebemos tanto a passagem do tempo, quanto o amadurecimento da personagem, através da complexidade das músicas que ela toca ao piano.”
“Como estudei piano clássico por 13 anos”, prossegue Gustavo, “tenho uma certa noção dos métodos usados para o ensino do instrumento, e daí partimos de escalas musicais, chegamos ao Pequeno Livro de Anna Magdalena de Bach, a Berceuse de Brahms e o Danúbio Azul de Strauss (que aqui acaba tendo um sentido duplo na narrativa). Por outro lado, a história começa no carnaval, em algum ano não especificado, e por isso usamos algumas marchinhas de carnaval. Um grande spoiler – a peça começa com A Lua É dos Namorados – de Ângela Maria. E temos também uma valsa brasileira, Sonhos Azuis, de Carlos Galhardo, num dos momentos mais intimistas e tocantes da peça. A montagem desta trilha foi muito interessante, pois exigiu uma pesquisa que buscasse uma conexão da música com a cena e com a história. Mas não num sentido literal e sim poético. Por isso é importante assistir à peça, para entender a lógica da trilha, pois ela fala sobre o tempo e sobre nossos sonhos e como eles se concretizam ou se perdem à medida que amadurecemos.”
Houve ainda um preparo meticuloso quanto à técnica corporal necessária para a expressão dos sentimentos. Sobretudo pelo uso de máscaras e manipulação de bonecos, técnicas que exigem muito do corpo dos atores. Marise Nogueira, no elenco, foi responsável por essa preparação técnica. “As figuras inanimadas precisam que o ator empreste sua alma para que eles ganhem vida”, confirma Henrique Gonçalves. “Valorizamos a importância do olhar do ator sobre a mise en scène, o que torna a peça mais acolhedora para a plateia.”
Um artesão que faz a diferença
Não seria completo falar de Azul sem citar o impecável trabalho de Dante, o reputado artesão que confecciona bonecos e máscaras. Ele já fez preciosos trabalhos para a Artesanal, com bonecos sempre muito expressivos e bem articulados. Só faltam falar. No caso de Azul, o que será que ele fez e como pensou tudo? Dante responde: “Com a Artesanal Cia de Teatro, que é minha família criativa, demos as mãos e nos aventuramos a brincar para contar esta história. Uma das minhas referências principais foi o desenho animado. Busquei rememorar as formas estilizadas e cores dos desenhos que assistia quando menino, e tentei misturar com os desenhos que as crianças têm como referencial atualmente. No fazer, trouxe a escultura como elemento analógico. Para mim, o analógico virou revolucionário, porque vivemos num contexto tão tecnológico e no meio de tantas inteligências artificiais… Os bonecos, movimentados por atores, dependem do impulso humano, podem ser tocados e têm os próprios cheiros. Esses bonecos tentam evidenciar a existência física e não apenas virtual. Isso nos leva ao olhar e ao cuidado sobre o próximo. Pelo menos assim espero.”
Serviço
Azul
Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112, São Paulo. Tel.: (11) 4297-0600.
Horários em janeiro: Sexta, 15h. Sábado e domingo, 11h e 15h.
Horários em fevereiro: Sábado e domingo, 11h e 15h. Não haverá apresentação nos fins de semana de 10 e 11 de fevereiro, e 17 e 18 de fevereiro. R$ 30
Até 25 de fevereiro