Canal MF fez uma pergunta para os principais criadores do musical ‘Sonho de Uma Noite Sem Palavras’, que aborda um tema delicado, quase sempre tratado com desinformação e preconceito: o cotidiano das crianças disléxicas
Por Dib Carneiro Neto
Ela é uma menina disléxica. Tem dificuldades para ler e escrever. Fora isso, é uma garota criativa, inteligente, cheia de ideias. Uma dessas ideias é encenar uma peça de teatro para homenagear seu irmão mais velho, que vai se casar. Certa vez uma amiga leu para ela Sonho de Uma Noite de Verão, peça de Shakespeare, que tinha justamente essa situação: uma peça encenada durante a festa de um casamento. “Por que não fazer isso também para meu irmão?”, pensa Julia, a protagonista de Sonho de Uma Noite Sem Palavras, espetáculo que estreia sábado, dia 16, no Teatro Morumbi Shopping para temporada até 29 e outubro, aos sábados e domingos, às 15 horas.
O desafio foi grande: falar de dislexia, para o público mirim, sem aumentar ainda mais o preconceito e a desinformação, mas também sabendo que teatro não é palestra. Quem fez o texto pensou na estrutura de uma peça dentro de outra peça. Quem dirigiu tomou cuidado para não carregar nas tintas da pieguice nem da piedade. Quem fez cenário, figurino, música, luz – cada um pensou no seu jeito de abordar a dislexia no teatro e nos ajudar a compreender melhor as pessoas que vivem e convivem com esse transtorno de desenvolvimento ligado às habilidades de linguagem. Leonardo Da Vinci, Steven Spielberg, Walt Disney, Agatha Christie e Tom Cruise são exemplos de pessoas famosas disléxicas e brilhantes.
Para o papel da menina protagonista, de nome Júlia, foi selecionada em audição a atriz mirim e youtuber Alice Pietra, de 10 anos, craque nas dancinhas de Tik Tok, estreando no teatro musical. Ela pode ser vista em comerciais de TV e em séries recentes das plataformas de streaming. Uma curiosidade da peça é que a menina Julia tem um amigo imaginário – e ele não é interpretado por nenhum ator. O amigo imaginário de Julia se chama Pet Drone. Em cena, um aparelho de drone, de verdade.
A seguir, para que você tenha uma visão completa de como será o musical Sonho de Uma Noite Sem Palavras, o Canal MF fez uma pergunta diferente para cada um dos criadores da ficha técnica da peça. Ao final da leitura, você compreenderá como foi o processo de criação do espetáculo e o que cada profissional pensou ao ter de abordar tema tão sério e delicado.
Com a palavra, a afinada equipe de Sonho de Uma Noite Sem Palavras.
Comente – citando exemplos de seu “texto sem palavras” – como a dislexia foi parar numa das tramas mais populares da obra imortal de Shakespeare e de que forma o tema se encaixou no enredo de Sonho de uma Noite de Verão.
ALESSANDRO TOLLER (texto) – A peça tem como protagonista uma menina com dislexia. Ela tem, por conta disso, dificuldades para ler e decorar textos. E, ao mesmo tempo, ama teatro e passa os dias brincando em construir maquetes e criar cenas. É sabido que muitas pessoas com dislexia possuem uma criatividade e articulação de raciocínio acima da média. Seu irmão, a figura com a qual mais tem intimidade dentro de sua família, está prestes a se casar. É aí que, inspirada pela comédia clássica de Shakespeare (cuja amiga leu uma vez para ela), toma o exemplo dos iletrados artesãos, que vão apresentar a história de amor de Píramo e Tisbe às núpcias de Teseu e Hipólita, para fazer sua própria versão de Píramo e Tisbe como presente de casamento ao irmão e sua noiva. No caso, uma versão sem palavras.
Conte o que mais você assinalou e reforçou para todo o elenco com relação a encenarem uma peça sobre dislexia que não poderia cair no didatismo explícito. Que recomendações vocês da direção mais fizeram ao elenco?
LUCIANO GENTILE (encenação e direção) – Dois pontos foram muito assinalados para fugirmos do didatismo explícito em relação à dislexia, e, durante o processo, descobrimos o quanto ambos se complementam:
1. Olharmos para esse transtorno neurobiológico como uma OUTRA FORMA DE PERCEBER o mundo, e não como uma doença fatalista, preconceito este muito comum;
2. Vivenciarmos o UNIVERSO DE UMA PESSOA DISLÉXICA, experimentarmos como é se relacionar com o entorno tendo dificuldade tanto para ler quanto para escrever.
O primeiro ponto aguçou nossa observação sobre as RELAÇÕES que a maioria das pessoas estabelece com disléxicos, e mais especificamente, sobre as relações que as personagens constroem entre si a cada cena. Por exemplo, a impaciência da mãe em relação à menina aparece mais como um julgamento de que Julia é uma pessoa preguiçosa do que alguém com outra percepção/tempo sobre as coisas.
Já o segundo ponto estimulou nosso olhar sobre o que é viver em um mundo totalmente voltado para quem tem as habilidades da leitura e da escrita. Como consequência, trouxe-nos a necessidade de realizarmos JOGOS CÊNICOS que priorizassem mais a imagem que a palavra. Construímos desenhos de cena dinâmicos, em que as proximidades e distâncias entre as personagens já dizem algo antes mesmo das falas propriamente ditas.
Relacione a xilogravura de Escher (escolhida como inspiração) com o que as crianças verão (visualmente) no palco em uma peça sobre dislexia.
LUCIANO GENTILE (cenografia) – A xilogravura Relatividade, de Escher, é composta de muitas escadas que se ligam entre si. Cada uma delas propõe uma narrativa que no instante seguinte é traída, pois a ligação com outra escada já inicia outro caminho para a história, que reconfigura aquilo que veio antes. São diferentes pontos de vista que convivem concomitantemente. A possibilidade de diferentes pontos de referência e a materialidade das escadas foi o que selecionamos da obra desse artista gráfico holandês. Em cena há duas escadas que se dividem em duas partes cada uma delas. Sendo assim, a cada cena, diferentes disposições e arranjos dessas escadas, ou de suas partes, propõem olhares distintos sobre a casa da protagonista, sobre a relação que a menina estabelece com sua família.
O que mais te orgulha ao final de todo o processo da montagem de um espetáculo tão bem pensado e com um tema que exigiu tantos cuidados e delicadezas?
VIVI MORI (direção geral) – O que mais me orgulho desse processo é a construção de um espaço de criação coletiva, não hierárquico. Todas e todos contribuíram para a elaboração de cada pedaço desse espetáculo. Foi como se, mesmo montando um musical, que possui aquela sina da hierarquia, conseguimos trazer para dentro de nossa montagem aquela vivência do teatro de grupo, em que cada ideia, cada proposição cênica, sempre é bem-vinda, seja na elaboração dos arranjos musicais, seja na articulação das cenas, ou das falas do texto. Acho que encontramos um equilíbrio.
Uma das características de pessoas disléxicas é o problema de aprendizagem de rimas, a falta de interesse pelas rimas. Em sua trilha, de cerca de 15 canções, do reggae ao rock, conte um pouco sobre o papel da música em uma peça com tema tão delicado.
MIGUEL BRIAMONTE (canções e direção musical) – A dramaturgia musical, que permeia todas as canções deste espetáculo, realmente tem aqui um tema delicado e, por isso, muito rico. As tramas que envolvem toda a história, tanto a relação entre mãe e filha quanto as outras tramas paralelas que acabam se cruzando, enfim, tudo isso é intenso, com muitas demonstrações de amor e carinho. Tudo isso é como se fosse uma floresta para se compor, um grande parque de diversões. Eu procurei trocar figurinhas sobre cada momento com os outros criadores, saber sobre a atmosfera de todas as cenas. O que fiz tem reggae, tem rock, um pouco de tudo, um tango meio Piazzolla, uma canção bem romântica… Foi bem instigante, desafiador, e muito prazeroso ao mesmo tempo, porque tive de buscar muito colorido, muito gráfico, muita emoção para poder transmitir com a música todos esses momentos. Delicado e intenso, uma delícia. Mais um detalhe: a música é uma outra personagem do espetáculo, dizem. Mas para mim ela não é um mero personagem a mais, ela é o texto em forma de música, ela é a música que conta a história, é o drama em música.
De que forma uma peça sobre dislexia pode contribuir para combater preconceitos e como esse tema tem sido recebido por apoiadores, patrocinadores, programadores dos teatros, coordenadores de escolas etc.?
CELIA TERPINS (direção de produção) – Como produtora e educadora durante 40 anos, vejo a questão da dislexia como mais um problema que temos de abordar com respeito, atenção, profissionalismo e com muito amor. Hoje temos ferramentas, que são pouco usadas nas escolas, para agregar as crianças que apresentam problemas como a dislexia. Ter a oportunidade de, no teatro, abordar de forma lúdica e mostrar que essa criança, inteligente, idealiza plenamente uma peça dentro de outra peça, instiga a reflexão sobre tudo isso. Sempre que abordamos um problema que se torna presente e passa a conviver de forma clara e consciente, ele passa a apresentar sinais de resolução, inclusive de normalidade, em um momento em que as estatísticas trazem, cada vez mais, números que crescem com essas características. Inclusão na prática é isso! Aceitar e respeitar!
Você gosta mais de teatro do que sua personagem Julia? Conte também o que você mais gostou na Julia, se você já teve algum amigo imaginário como ela tem (se sim, conte como ele era ou é) e, por último, se você sabia o que era dislexia antes de fazer esta peça.
ALICE PIETRA (atriz de 10 anos, vive Julia) – Acho que gosto mais de teatro do que a Julia! (risos). E o que eu mais gosto na Julia é a sua criatividade!! Não, nunca tive amigos imaginários, acho que é porque eu tinha medo deles… Eu brincava na rua sem parar, das 10 da manhã até às 10 da noite e, ainda, entrava em casa chorando, porque queria brincar mais. Eu tinha amigos de verdade, não imaginários. Uma vez voltei pra casa só à 1 da madrugada. A gente brincava de pega-pega, esconde-esconde, amarelinha, zumbi, Extraordinário, polícia-ladrão, detetive… Até hoje ainda é assim. Eu brinco muito. Ah, sobre a última pergunta: eu ainda não sabia o que era dislexia, não.
Quais as cores da dislexia, ou seja, como você pensou os figurinos para esta peça de tema tão específico?
DANIEL INFANTINI (figurino) – As cores do cenário são em preto e amarelo, então para os figurinos me foi solicitado que eu ficasse também nessa paleta. Eu fugi um pouco, mas respeitei o pedido, de forma geral. Dividi os figurinos em dois núcleos, o dos personagens adultos e o das crianças. Achei que deveria pensar menos na questão da dislexia para os figurinos, mas sim valorizar nas roupas outra característica forte da protagonista: ela adora teatro e as artes em geral. Imaginei que essa criança tivesse em casa seu próprio acervo diferente de roupas e adereços. Como um baú de roupas para brincar. Então, ela tem uma roupa base e vai brincando com esses elementos de figurino que já tem em casa, no seu baú. Todo esse mundo dessa criança é colorido. Pai, mãe, noivo e noiva, ao contrário, ficam mais fixos no preto e amarelo que a produção queria. Pai se veste todo de preto, por exemplo. A mãe, que é negra, usa roupa laranja. Tudo mais monocromático e sóbrio. Os noivos (o irmão da protagonista com a noiva) usam roupas parecidas, como se ambos tivessem comprado juntos em um shopping. Ao contrário da menina protagonista, que se veste de um jeito que nunca ninguém vai achar em loja, uma sobreposição criativa de adereços coloridos. Manchinhas de tinta também aparecem na roupa da menina, assim como o tênis todo rabiscado com assinatura dos amigos e jogos da velha inacabados. Um conceito bem vivo de criança. A tia, que mora no mato, usa tecidos leves, soltos, mais naturais. Um aspecto importante da peça é que há uma transformação e todos os personagens vão passar por essa mudança. Na transformação dos adultos, eu fiz a menina encher os personagens de acessórios coloridos, que seriam só dela até então. E eu criei, para a menina, um código para sua transformação. Ela tem uma mochilinha, em que carrega seus objetos. Como um casulo. Na transformação, essa mochila se abre como duas asas de borboleta nas costas da menina.
Conte como a iluminação foi desenhada para marcar uma peça dentro de outra peça.
DANIELLE MEIRELES (designer de luz) – Meu ponto de partida foi a percepção e imaginação de uma criança perante as relações cotidianas e segui desta forma para realizar minhas escolhas no desenho de luz. A casa da família vem em um registro mais próximo da realidade do dia a dia, enquanto as ocasiões em que a imaginação da protagonista toma a cena possibilitam momentos mais divertidos e lúdicos visualmente.
Serviço
Sonho de Uma Noite Sem Palavras
Teatro MorumbiShopping.
Avenida Roque Petroni Júnior, nº 1.089, Piso Superior G1
Sábados e Domingos, 15h. R$ 40 (meia) e R$ 80 (inteira)
Recomendado pela produção para crianças a partir de 6 anos.
Até 29 de outubro