Peça com dramaturgia de Angela Ribeiro e Lis Ricci e dirigida por Erica Montanheiro usa o humor ácido ao apresentar o transtorno
Por Kyra Piscitelli
Burnout é um termo que faz parte do nosso vocabulário, seja no mundo corporativo ou mesmo fora dele. A síndrome do esgotamento mental e físico foi reconhecida como enfermidade oficial pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2022 e inspira o espetáculo Burnout, que estreou no Centro Cultural São Paulo.
A peça foi idealizada por Lis Ricci, que assina a dramaturgia ao lado de Angela Ribeiro. Elas também estão em cena ao lado das atrizes Palomaris e Priscila Ortelã, com direção de Erica Montanheiro.
Qual o caminho para se chegar até tal esgotamento? Quais escolhas ou falta de opção nos colocam nesse caminho sem volta rumo à precarização do trabalho e à exploração máxima dos corpos no sistema capitalista? Tais perguntas iniciaram o processo do espetáculo, que parte da experiência de Lis Ricci, ex-professora de artes da rede municipal de ensino, com o diagnóstico de Burnout. O setor da educação, aliás, é um dos que mais sofrem no Brasil e a incidência, segundo pesquisas, é ainda maior em mães e mulheres.
“Quando vimos as pesquisas, acessamos materiais e entendemos que as mulheres são mais atingidas. Aliás, é uma situação que atinge a mulher também, uma vez que nossa sociedade é capitalista e patriarcal. Isso já é um recorte de como lidar com essa sociedade machista”, comenta Erica.
O assunto, segundo ela, tem interessado como diretora e no papel de atriz também. “A peça mais recente que fiz foi Gaslight – uma Relação Tóxica, que foi a última dirigida por Jô Soares. Gaslight foi eleita a palavra do ano passado e também trata de abusos, tema cada vez mais discutido e que atinge a todos, principalmente mulheres. Então, quando a Lis me convidou, fez muito sentido dirigir.”
Mercado corporativo X artistas
“A síndrome também não é exclusividade do mercado corporativo. Há mais semelhança entre os dois do que se pode supor. No caso do artista, por exemplo, que dá aula, canta, estuda e assume muitos projetos simultâneos, há um acúmulo de funções para conseguir pagar suas contas”, conta Erica.
“A peça causa a identificação porque é o que todos passam todos os dias. A gente não precisa naturalizar as situações absurdas, mas trazer esse tom e o olhar do artista é uma forma de fazer essa reflexão em um outro lugar também. Todos nós passamos por isso, porque vivemos nesse sistema de ter que entregar mais, entrar em embates com pessoas, buscar o seu valor e reconhecimento e naturalizar os abusos nesse processo que culmina no Burnout”, completa a diretora.
Burnout em cena
Burnout narra o encontro de quatro mulheres: uma mãe, uma atriz, uma cantora e uma professora. A reunião, que seria um show, se transforma no ensaio de um show, ou seja, é uma peça dentro de outra peça. Elas convidam o público a imaginar a história. O começo é uma explosão (ou seria uma implosão?). E, quando tudo vai pelos ares, narrativas se emaranham tentando dar conta de tudo, sem conseguir dar conta de nada. Uma sucessão de fracassos. Elas atravessam os inúmeros acontecimentos e, nessa jornada, compreendem que as máquinas, às vezes, podem ser seus próprios corpos.
“Teatro é ação. Então, decidi transpor para a cena esse acúmulo de funções que levam ao esgotamento e ao adoecimento. As atrizes não param, pois cantam, operam, atuam. Há uma série de sobreposições. Essa ação materializa o processo de adoecimento, mas traz o assunto dentro da ação sem ser discursivo”, diz Montanheiro.
O espetáculo ainda emula em seus elementos visuais o boxe, modalidade esportiva recomendada para pessoas diagnosticadas com Burnout, que foi estudada como preparação corporal de equipe, e é usada como ação física em algumas cenas da peça.
“Quem sofre de Burnout precisa fazer exercício físico e um dos sugeridos para a Lis foi o boxe, que é uma referência forte. Ele é uma camada da peça e a luta é uma dessas referências que encontramos em estudos e que está ali sobrepondo a cena”, afirma Erica.
Mulheres em cena e na ficha técnica
Burnout tem uma curiosidade: o elenco e a ficha técnica são todas femininas. O que, segundo a diretora, não é uma coincidência.
“É um objetivo que tracei desde que comecei a dirigir, em 2017, e minha parceira de trabalho, diretora assistente e preparadora corporal, Ana Elisa Mattos, também abraçou essa ideia. É um jeito de dar oportunidade para mulheres profissionais de aparecer em fichas técnicas, mostrando seu trabalho. Assim, equilibramos essa questão. Se olharmos para os grandes espetáculos ou os ‘comerciais’, essas fichas técnicas são, geralmente, preenchidas por homens. E claro: se precisarmos de um outro profissional específico, vamos chamar homens ou mulheres. Não é uma regra, é uma opção para tentar fazer girar a roda de profissionais e criar um equilíbrio”, pontua a diretora.
Humor a partir do caos real
Por se tratar de teatro, a peça não traz o tema naturalizado, afinal é preciso equilibrar a seriedade do tema. “Entendemos que a precariedade das condições de alguns trabalhos, unida às relações abusivas e ao acúmulo de funções, são os disparadores desse esgotamento. Porém, tudo sendo naturalizado nos pareceu tão absurdo que foi impossível não encontrar um humor ácido, quase em tom de deboche, a fim de olhar para esse painel criticamente.”
“Como tudo na vida, como diria o saudoso Jô Soares, tem o humor, tem o ‘ridículo’ do ser humano. E às vezes a gente passa por uma situação de estresse, mas, olhando de fora, as situações parecem patéticas e vulneráveis. O papel do artista é esse: de olhar diferente, meio torto, de ponta cabeça e daí vem o humor, isso é o trabalho do palhaço”, finaliza Montanheiro.
Serviço
Burnout
Centro Cultural São Paulo – Sala Ademar Guerra – Rua Vergueiro, 1000
Quintas e sextas, 19h. Sábados e domingos, 17h. R$ 30
Até 17 de setembro