Formado só por atrizes, o Núcleo Caboclinhas, de volta com o infantojuvenil “Cora, Doce Poesia”, faz aqui – com exclusividade para o Canal MF – uma ‘radiografia’ do espetáculo mais triunfante de seu repertório
Por Dib Carneiro Neto
Já se somam seis temporadas: Sesc Santo André, Sesc Pinheiros, Sesc Ipiranga, Sesc Bom Retiro, Teatro João Caetano e, agora, até início de setembro, com entrada grátis, no Teatro do Sesi, em São Paulo. Cora, Doce Poesia, do Núcleo Caboclinhas, arrebanha fãs por onde passa.
Fãs de todas as idades. Como não se encantar com a história sofrida de superação da poeta goiana Cora Coralina, que, além de preencher páginas em branco com versos bem talhados, forrava as mesas com seus doces tentadores e flores pacientemente cultivadas? Uma artista completa.
O Núcleo Caboclinhas, na estrada há 16 anos, homenageia a vida e obra de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, mais conhecida como Cora Coralina (1889-1985). O público-alvo são crianças a partir de 7 anos, embora seja uma peça recomendada para todas as idades.
A companhia, formada pelas atrizes Aline Anfilo, Geni Cavalcante, Giuliana Cerchiari e Luciana Silveira, define Cora, Doce Poesia como “um espetáculo narrativo literário musical”. A trajetória de Cora, desde a infância até a velhice, é contada e cantada.
Traduzir em cenas e canções toda a simplicidade tocante com que Cora viveu foi um desafio que o Núcleo Caboclinhas, cercado de ótimos colaboradores na ficha técnica, conseguiu executar com louvor. Cenografia e adereços de Victor Merseguel. Figurinos incríveis de Rogerio Romualdo. Trilha original e direção musical de Zé Modesto. E assim por diante.
Mas nem só de lirismo e doçura se conta essa história. “A poeta criou para si todo um universo, em detrimento da opressão que sofria, até chegar à determinação de escrever e enfrentar, com coragem, uma sociedade machista e conservadora”, diz a atriz Aline Anfilo.
Assim, Cora, Doce Poesia é, mais do que tudo, o retrato de uma mulher brasileira forte e determinada, que se empoderou muito, em um tempo em que esse verbo nem era usado dessa forma.
Nesta entrevista, as atrizes do Núcleo Caboclinhas contam tudo sobre essa atração de sucesso que elas têm no repertório e nos brindam com suas palavras de fé no teatro e emoção pela vida. Com vocês, a detalhada “radiografia” de um espetáculo triunfante.
(Ah, e veja só a boa notícia saindo do forno: além da temporada no Teatro do Sesi com a peça sobre Cora, o Núcleo Caboclinhas acaba de ganhar uma mostra de todo o seu repertório, a ser apresentada no Centro Cultural da Penha, até 1º de outubro, também com todas as apresentações gratuitas e interpretação simultânea em Libras. Mais detalhes no serviço abaixo.)
Dentre os espetáculos que vocês fizeram até hoje, homenageando grandes nomes de nossa cultura, qual teve mais aceitação e como vocês avaliam essa preferência?
Aline Anfilo – Temos dois espetáculos que são biografias: Letras Perambulantes, que conta a vida e obra do poeta cearense Patativa do Assaré; e Cora, Doce Poesia, que conta a vida e obra da poeta goiana Cora Coralina. E de fato são duas peças muito queridas pelo nosso público. São dois universos muito diferentes. Um poeta nascido no sertão do Cariri, tendo que trabalhar quando criança para ajudar a sustentar a família, mas desde sempre criando versos, acompanhando os repentistas da cidade….e uma poeta nascida na Vila Boa de Goiás, numa época em que crianças e mulheres não tinham voz, mas que também transformou toda essa dureza em poesia. Sou suspeita para falar de biografias, porque gosto muito! Me interesso muito pela vida das pessoas, para além de sua obra. Quem foi essa pessoa, onde nasceu? Como viveu? Por quais questões passou até se transformar na pessoa que conhecemos. Acredito que seja uma espécie de curiosidade de muitas pessoas, em geral, e que gera um encantamento. Ainda mais quando a história é uma história de superação.
Por que resolveram voltar com Cora?
Giuliana Cerchiari – A gente nunca teve intenção de parar, na verdade. Não acreditamos no fim de espetáculos. Especialmente os que relembram histórias nas quais as pessoas possam se identificar, ou mesmo, que façam as crianças elaborarem pensamentos críticos sobre si e sobre o mundo em que vivem. Ontem mesmo, uma mulher saiu da apresentação e disse que contamos a história da vida dela que, no caso, era bem parecida com a vida da protagonista. Enquanto o machismo estiver na estrutura de nossas relações, essa peça estará viva e voltando. Ficamos felizes, pois já percebemos meninos crianças sensibilizados ao notar como o machismo tentou impedir Cora de ser a artista que era. Cora voltou porque nossa sociedade cavou espaço para falarmos dela e seguiremos falando…
Luciana Silveira – Verdade, nós nunca paramos, inclusive durante a pandemia nos reinventamos, virtualizando as peças do nosso repertório. Desde a comemoração dos 15 anos, em 2022, estávamos buscando ficar em cartaz com o repertório da companhia, e agora faremos isso na mostra do Centro Cultural da Penha.
Quais as características da vida e da obra de Cora Coralina que mais encantaram vocês e as levaram a fazer o espetáculo?
Aline Anfilo – A mim me encanta desde as coisas mais simples, como o contato profundo que tinha com a natureza, as brincadeiras no quintal, os primeiros versos, o primeiro poema que teve como mote a própria natureza, todo um universo que criou para si, em detrimento de toda opressão que sofria, até sua determinação em escrever, em enfrentar uma sociedade machista e conservadora numa época como a que ela viveu, sua coragem de romper com a opressão que sofria da própria família inclusive, e com tão pouca idade se aventurar a sair de sua cidade e vir se aventurar em São Paulo. Não posso deixar de falar também da sua poesia! Quanta dureza e quanto lirismo retratados em sua obra! Cada poema que li me tocou profundamente, e me fez querer compartilhar isso com o mundo! Muito da nossa dramaturgia são poemas de Cora, que é o mote principal do trabalho.
Giuliana Cerchiari – Me encantou nela a percepção integral do mundo como organismo vivo: o relacionamento com a natureza, a empatia e o cuidado com as pessoas, o amor pela terra e pela escrita.
Luciana Silveira – Quanto a mim, cito a capacidade de Cora de ver a vida sempre pelo lado otimista. A Cora desde muito cedo sempre foi excluída, e sempre manteve sua fé em si. Imagina uma jovem fugir numa madrugada com um homem muito mais velho para um local desconhecido e carregando em seu ventre um bebê, para que juntos pudessem viver sem amarras e sem olhar para trás. Ela sempre se refez sozinha. Eu admiro muito essa virtude de recomeçar a sonhar e realizar sem pestanejar. Todo mundo percebia em suas conquistas a luta que traçou, mas ela não se acomodava e partia para novos desafios. Incrível isso, até quase no final da vida, aos 75 anos, ela foi cursar datilografia, para publicar seu primeiro livro. Pensem naquela senhora de cabelos brancos deixando de catar milho, para redigir esses lindos poemas, que hoje conhecemos, somente com objetivo de compartilhar com o mundo, seus pensamentos.
O que em Cora Doce Poesia mais agrada ao público de crianças?
Aline Anfilo – Sem dúvida são as figuras dos fantasmas, que foram criadas justamente para dar o tom lúdico numa história que por vezes é tão dura. Eles acompanham a trajetória toda da protagonista, e se tornam uma espécie de narradores, ora confidentes dela, enfim, parceiros de jornada. A fase da infância também agrada muito, porque é onde a menina sofre o que sofre, mas consegue achar seus momentos de maravilhamento com a vida, que é quando brinca de dar aulas para as formigas – suas únicas companheiras. A criança se identifica prontamente com esse ambiente natural de se encantar com pequenas coisas, com a descoberta das palavras, o contato com a natureza que é tão inerente ao ser humano, mas que perdemos conforme crescemos. E até mesmo questões mais complexas, como o machismo apontado na peça de forma tão sútil, já foi captado pelos pequenos mas atentos espectadores.
Giuliana Cerchiari – Como faço a protagonista na fase da infância, percebo que as crianças adoram o contato dela com as formigas. No prólogo, conto isso para elas e vejo que ficam encantadas quando dou as sementinhas para elas plantarem. Uma menina me disse que conversa com as joaninhas.
Luciana Silveira – As crianças se identificam muito com a fase da infância em que ela, sem amigos ou irmãos, brinca com as formigas imaginárias, algo que talvez as crianças também façam, além de se divertirem com os fantasmas.
Talvez por se tratar de peça sobre uma poeta, vocês usam metáforas no texto. Comentem como isso chega até as crianças. Elas entendem melhor de metáforas do que os próprios adultos, não é? Se possível deem exemplos de metáforas da peça.
Aline Anfilo – Muito da nossa dramaturgia foi construída com os próprios poemas da Cora, e os poemas por si só já trazem esse universo simbólico, recheado de metáforas. O exemplo mais claro disso, é o texto final, em que Cora, já com idade avançada, depois de ter retornado à velha casa da ponte, e num momento de reflexão e síntese de tudo o que viveu, diz: “Não te deixes destruir… Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas, recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema.”
Comentem a escolha de vocês pela alternância de atrizes no papel de Cora. Funciona bem?
Luciana Silveira – A ideia era cada uma compartilhar algo em comum com a Cora. Inicialmente a minha escolha foi falar do lado doceira da poeta, por gostar bastante de cozinhar, mas, durante o processo, eu fui percebendo algumas semelhanças da minha trajetória com a fase adulta da Cora. Então, nesse caso era uma delícia viver no palco situações que eu nunca vivi na minha vida, mas sentia o desejo de viver. Como, por exemplo, sair de uma cidade para conhecê-la e já voltar com a casa alugada. Acredito que isso colaborou bastante para a personagem ser compartilhada. Cada atriz se doando à mesma personagem, para criança conhecer um ser único, como foi Aninha.
De onde veio a ideia de fazer formigas conversarem com a poeta? Isso está em algum poema dela?
Luciana Silveira – Ao ler os livros que trazem parte da biografia da poeta (Cora Coralina, Raízes de Aninha, escrito por Clóvis Carvalho Brito e Rita Ellisa Seda, e Cora Coragem Cora Coralina”, escrito pela sua filha caçula Vicência Brêtas Tahan), ambos trazem a triste e solitária infância da menina, que não tinha amigos e nem mesmo a participação das suas irmãs em brincadeiras, restando-lhe brincar apenas com suas amigas formiguinhas, suas eternas escudeiras.
Por que é tão importante levar para as crianças a história de personalidades tão ligadas à cultura popular brasileira?
Luciana Silveira – Conhecer suas origens é muito importante para um povo, ainda mais quando a sua real história é silenciada. É gratificante reconhecer pessoas comuns que transformaram sua realidade e ainda inspiram novas gerações a transformarem a sua. Acredito nessa missão, levar luz ao que está apagado ou oculto.
Existem pessoas ligadas a Cora de alguma forma (parentes, estudiosos da obra) que viram o espetáculo?
Luciana Silveira – Sim, a sua filha caçula (Vicência Tahan Bretas), que hoje mora em São Paulo, netos e bisnetos, assistiram durante a temporada que fizemos no Sesc Pinheiros. Ao término, conversamos com os familiares da poeta e todos estavam emocionadíssimos com nossa forma de contar a história. Eles falavam muito sobre tudo que escolhemos retratar diante de tantos fatos e acontecimentos na vida da poeta, elogiaram os momentos escolhidos, pois boa parte do público que acompanha a poesia de Cora desconhece a sua trajetória, antes de ela lançar seu primeiro livro, aos 75 anos de idade. Muita gente sabe da vida dela após esse feito, ou seja, após o seu reconhecimento..
Quais os planos do grupo para os próximos espetáculos? Quem mais vocês querem retratar no palco?
Luciana Silveira – Ainda não temos nada certo, estamos num processo de pesquisa graças ao edital Fomento ao Teatro, pelo qual fomos contempladas em 2022. Gostamos bastante da ideia de trazer o universo dos povos originários e a tentativa do apagamento, claro, dando o poder de fala a quem é de direito. Mas estamos sentindo que a ancestralidade pode ser um dos temas do próximo espetáculo do Núcleo Caboclinhas.
Serviço
Cora, Doce Poesia
Teatro do Sesi. Avenida Paulista, 1.313
Quintas e sextas-feiras às 11h. Sábados e domingos às 15h.
Ingressos gratuitos – os bilhetes são liberados toda segunda-feira, a partir das 8h, no site do Sesi: www.sesisp.org.br/eventos
Até 3 de setembro
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Mostra de repertório do Núcleo Caboclinhas
Centro Cultural da Penha – Largo do Rosário, 20, Penha de França
Grátis, distribuição de ingressos uma hora antes de cada apresentação
Até 1º de outubro