Mestre do humor, além de dramaturgo, editor, tradutor, artista gráfico, ele é homenageado no centenário de seu nascimento
Por Ubiratan Brasil
A sessão de autógrafos corria solta quando um rapaz deixou o livro em frente ao autor e pediu que ele escrevesse algumas bobagens. Sem pensar duas vezes, o escritor abriu a obra e, com a caneta em punho, disse ao desastrado fã: “Muito bem, pode começar a ditar”.
Criar frases de efeito era apenas uma das inúmeras qualidades artísticas do escritor, jornalista, tradutor, dramaturgo e artista plástico Millôr Fernandes, cujo centenário de nascimento é lembrando nesta quarta-feira, dia 16 de agosto.
Morto em março de 2012, aos 88 anos, ele ainda se mantém como um dos mais finos pensadores brasileiros. Autor de uma obra cujo conjunto soma inúmeras cem peças, uma infinidade de desenhos, traduções e meia centena de livros, Millôr Fernandes era responsável pela valorização de um gênero literário tão conhecido universalmente mas que, sob sua ótica, se transformou em sátira da grande esculhambação que é a vida humana. Era justamente a busca de um olhar original sobre o homem que o incentivava a criar.
“Millôr, como todo artista, é aquele que via o outro lado das coisas”, disse o crítico de artes plásticas Agnaldo Farias na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, de 2014, que homenageou o artista carioca. “O que se sobressai é o filósofo, o homem que percebia a maleabilidade da palavra, trabalhava a ironia, as perversões sintáticas e o que isso podia provocar.”
De fato, tal habilidade Millôr empregou na sua íntima relação com o teatro, assinando a autoria de 24 peças, algumas se tornaram clássicas como Liberdade, Liberdade (ao lado de Flávio Rangel), Duas Tábuas e uma Paixão, É…, Um Elefante no Caos, Viúva Imortal, Flávia Cabeça, Tronco e Membros, O Homem do Princípio ao Fim e Kaos.
Também foi tradutor de peças de Shakespeare (Hamlet, Megera Domada e Alegres Matronas de Windsor) e Bernard Shaw (Pigmaleão), buscando um tom mais coloquial, ou seja, mais adequado à fala atual. “Millôr cultuava a palavra precisa. Ao traduzir Shakespeare, ele reduziu as expressões ao máximo”, disse o jornalista, escritor e pesquisador Sérgio Augusto, também na Flip de 2014.
Em sua própria história, aliás, Millôr flertava com o humor, ainda que involuntariamente. Carioca do Méier, ele nasceu em 16 de agosto de 1923, mas foi registrado em maio do ano seguinte. Julgava se chamar Milton Viola Fernandes mas, adolescente, descobriu que, graças a uma caligrafia duvidosa, fora registrado como Millôr. A data, aliás, também era incerta: 16, 27 ou 28 de maio ou agosto.
Com apenas 1 ano de vida, perdeu o pai. Nove anos depois, acontece a morte da mãe. “Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença”, costumava dizer.
Por isso, não tinha tempo a perder e, aos 10 anos, vendeu o primeiro desenho para a publicação O Jornal do Rio de Janeiro. Recebeu dez mil réis. Em 1938 começou a trabalhar como repaginador e contínuo n’O Cruzeiro, a maior revista da época. Assumiu a direção em 1943, quando também iniciou a publicação da seção Poste Escrito, agora assinada por Vão Gôgo.
De 110 mil exemplares, a tiragem de O Cruzeiro saltou para 750 mil. “O sucesso de O Cruzeiro faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem”, comentava. O êxito também rendeu financeiramente, a ponto de permitir que Millôr comprasse seu primeiro apartamento em 1954.”Era num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a grã-finada soube, correu atrás de mim e o lugar virou ‘status’, o metro quadrado mais caro do mundo.”
Deixou de utilizar o pseudônimo Vão Gôgo em 1962, quando começou a assinar apenas como Millôr os textos de O Cruzeiro. Abandonou a revista no ano seguinte, por conta de uma polêmica: a publicação de A Verdadeira História do Paraíso despertou a ira de conservadores católicos, que pressionaram a direção da revista.
Do Pif-Paf ao Pasquim
Aproveitando uma viagem de Millôr a Lisboa, a direção preparou um editorial não assinado em que o escritor era acusado de ter publicado a história sem conhecimento da redação, da secretaria e, consequentemente, da direção do semanário.
Em abril de 1964, logo depois de instaurada a ditadura militar, ele preparou o lançamento da revista quinzenal O Pif-Paf, que se tornaria outro de seus clássicos. Reuniu alguns dos maiores nomes do humor de então, como Stanislaw Ponte Preta, Ziraldo, Jaguar e Claudius, entre outros. Mesmo sem apresentar propostas políticas ou ideológicas, a revista foi perseguida pelo serviço de informação do exército e fechou depois do oitavo número.
No ano seguinte, 1965, ocorre a encenação de Liberdade, Liberdade, sua peça dirigida por Flávio Rangel que criticava abertamente o regime militar instaurado no ano anterior. A censura logo vetou o texto.
Ao lado de outra turma (Jaguar, Ziraldo, Tarso de Castro, entre outros), ajuda a fundar, em 1969, O Pasquim. Premonitório, Millôr deu o aviso logo no primeiro número: se o jornal fosse independente, seria fechado – se não fosse fechado, era porque deixara de ser independente. O fato é que O Pasquim abriu uma brecha na imprensa brasileira ao utilizar a inteligência e o deboche como resistência à rigorosa censura imposta pelo regime militar.
“No Pasquim, Millôr ajudou a mostrar como a imprensa podia se despir do terno e da gravata para conquistar a cumplicidade seu público”, observou o cartunista Claudius, na Flip de 2014. “E um de seus principais legados foi se posicionar como um vigilante da gestão da coisa pública”, completou o também cartunista Loredano, em Paraty.
Muitos dos jornalistas de O Pasquim foram presos pela ditadura militar, incomodada com o humor ferino de suas páginas, que conseguia driblar a censura para retratar a verdadeira realidade brasileira. Sobre o assunto, aliás, Jaguar costuma se lembrar de uma história engraçada: “Millôr só não foi preso porque, quando passou em sua casa, o camburão já estava cheio”.
Para Loredano, dono de um dos mais finos traços da atual caricatura brasileira, o humor de Millôr se destacava justamente por ser universal. “Não era típico judeu como o de Woody Allen, mas irreverente na sua origem carioca. Ele não queria mudar o mundo, apenas divertir.”
Livros do autor
Tempo e Contratempo, 1954 – Editora O Cruzeiro
Teatro de Millôr Fernandes, 1957 – Editora Civilização Brasileira
Um Elefante no Caos, 1962 – Editora de Autor, 1978 – L&PM Editores, 1998 – L&PM POCKET
Lições De Um Ignorante, 1963 – J. Álvaro Editora
Fábulas Fabulosas, 1963 – J. Álvaro Editora
Liberdade, Liberdade, 1965 – Teatro (com Flávio Rangel) – 1998, L&PM POCKET
Papáverum Millôr, 1967 – Editora Prelo, 1967 – Editora Prelo
Hai-Kais, 1968 – Editora Senzala, 1997 – L&PM POCKET
Computa, Computador, Computa, 1972 – Editorial Nórdica
Esta é a Verdadeira História do Paraíso, 1972 – Livraria Francisco Alves
Trinta Anos de Mim Mesmo, 1972 – Editorial Nórdica
O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, 1973 – L&PM Editores, 1998 – L&PM POCKET
Fábulas Fabulosas,1973
Papaverum Millôr, 1974
Conpozissõis Imfãtis, 1975
Livro Branco de Humor, 1976
Devora-me ou te decifro, 1976 – L&PM Editores
Millôr No Pasquim, 1977
Reflexões Sem Dor, 1977 – Editora Edibolso S.A.
É…, 1977 – L&PM Editores
Que País é Este?, 1978
O Homem do Princípio ao Fim, 1978 – L&PM Editores, 2001 – L&PM POCKET
Novas Fábulas Fabulosas,1978
Todo Homem é Minha Caça,1981
Vidigal: memórias de um Sargento de Milícias, 1981 – L&PM Editores
Desenhos,1981 – Editora Raízes Artes Gráficas Ltda. (prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss)
Duas Tábuas e uma Paixão, 1982 – L&PM Editores
Poemas, 1984 – L& PM Editores, 2001 – L&PM POCKET
Diário da Nova República, 1985 – L&PM Editores
Diário da Nova República Vol. 2, 1988 – L&PM Editores
Diário da Nova República Vol. 3, 1988 – L&PM Editores
Millôr Definitivo – A Bíblia do Caos, 1994 – L&PM Editores, 2002 – L&PM POCKET
Tempo e Contratempo, 1998 – Editora Beça – Millôr revisita Vão Gôgo. O autor, em 1998, analisa o autor de 1954
Kaos, 2008 – L&PM POCKET
Crítica da razão impura ou O primado da ignorância, 2002 – L&PM Editores
A entrevista: Millôr Fernandes fala à Revista Oitenta, 2011 – L&PM Editores
Traduções para o teatro
1960 – O prodígio do mundo Ocidental, de John M. Syuge
1961 – Gente como nós, de Irwin Shaw
1963 – Marat Sade, de Peter Weiss
1964 – Pequenos assassinatos, de Jules Pfeifer
1965 – Escola de mulheres, de Molière
1966 – A Megera domada, de W. Shakespeare (1998 – L&PM POCKET)
1967 – Lisistrata, de Aristófanes (2003 – L&PM POCKET)
1967 – A volta ao lar, de Harold Pinter
1967 – Blecaute, de Frederic Knott
1968 – A cozinha , de Arnold Wesker
1969 – Antígona, de Sófocles
1970 – Os rapazes da banda, de Mart Crowley
1971 – As eruditas, de Molière (2001 – L&PM POCKET)
1972 – Antigamente (Old times), de Harold Pinter
1975 – Os filhos de Kennedy, de Robert Patrick
1976 – Gata em telhado de zinco quente, de Tennessee Williams
1976 – Senhor Puntila e seu criado Matti, de Bertold Brechet
1977 – A calça (Die hose), de Carl Sternheim
1978 – Quem tem medo de Virginia Wolf?, de Edward Albee
1979 – Afinal, uma mulher de negócios, de Rainer W. Fassbinder
1979 – Palhaços de ouro, de Neil Simon
1980 – As alegres matronas de Windsor, de W. Shakespeare (1995 – L&PM POCKET)
1980 – Rei Lear, de W. Shakespeare (1997 – L&PM POCKET)
1980 – De quem é a vida, afinal?, de Brian Clark
1980 – A carta, de Somerset Maugham
1981 – As lágrimas amargas de Petra Von Kant, de Rainer W. Fassbinder
1981 – O jardim das cerejeiras, de Anton Tchekov (2006– L&PM POCKET)
1981 – A senhorita de Tacna, de Mario Vargas Llosa
1982 – Chorus line, de de Michael Bennet
1982 – A viúva alegre, de Victor Léon e Leon Stein (opereta)
1983 – A falecida senhora sua mãe, de George Feydeau
1983 – Piaf, de Pam Gems
1983 – Boa noite, mãe, de Marsha Norman
1984 – Grandes e pequenos, de Botho Strauss
1984 – Pô, Romeu!, de Efraim Kishom
1984 – Hamlet, de W. Shakespeare (1997 – L&PM POCKET)
1984 – Tio Vânia, de Anton Tchekov (2009 – L&PM POCKET)
1984 – Três histórias, de Dario Fó
1985 – Fedra, de Racine (2002 – L&PM POCKET)
1985 – O feitichista, de Michel Tournier
1985 – Imaculada, de Franco Scaglio
1985 – Sábado, domingo e segunda, de Eduardo de Filipo
1985 – Pigmaleão, de Bernard Shaw (2006 – L&PM POCKET)
1985 – Oh, Calcutá!, de Kenneth Tynan
1985 – Assim é, se lhe parece, de Luigi Pirandello
1986 – Quarteto, de Reinem Müller
1987 – O preço, de Arthur Miller
1987 – Filumena Marturano, de Eduardo de Filipo
1987 – Vestir os nus, de Pirandello
1988 – Encontrarse, de Pirandello
1990 – O belo Antônio, de André Roussin
1994 – Don Juan, o convidado de pedra, de Molière (1997 – L&PM POCKET)
1996 – Anna Magnani, de Armand Meffre
1996 – Paloma de Jean Anouilh
1998 – Aula magna, de Terence McNally
1999 – Últimas luas, de Furio Bordon
2008 – A Celestina, de Fernando de Rojas (2008 – L&PM POCKET)
Peças de teatro originais
1950 – Do tamanho de um defunto
1951 – Uma mulher em três atos
1955 – Pigmaleoa
1958 – Bonito como um Deus
1960 – Um elefante no caos (1998 – L&PM POCKET)
1960 – Pif-Tac-Zig-Pong
1963 – Flávia, cabeça, tronco e membros (2001 – L&PM POCKET)
1965 – Liberdade, liberdade (com Flávio Rangel) (1998 – L&PM POCKET)
1965 – O homem do princípio ao fim (2001 – L&PM POCKET)
1967 – A viúva imortal (2009 – L&PM POCKET)
1968 – Momento 68 (espetáculo para a empresa Rhodia)
1968 – Do fundo do azul do mundo
1969 – Mulher, esse super-homem (espetáculo para a empresa Rhodia)
1970 – Computa, computador, computa
1976 – É… (1977 – L&PM Editores)
1977 – A História é uma história (1978 – L&PM Editores)
1978 – Duas tábuas e uma paixão (1982 – L&PM Editores)
1979 – Bons tempos, hein? (show para o MPB4) (1979 – L&PM Editores)
1980 – Os órfãos de Jânio (L&PM Editores)
1983 – O MPB4 e o dr. Çobral vão em busca do mal (show para o MPB4)
1984 – De repente (musical)
1995 – Kaos (2008 – L&PM POCKET)