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O ano em que os veteranos renovaram a cena infanto-juvenil

Sinopse

Em São Paulo, quase duas dezenas de longevas companhias teatrais, voltadas para o teatro de censura livre e para as infâncias, estrearam espetáculos em 2025, fazendo o ano ficar marcado como renovador e resiliente

Por Dib Carneiro Neto (publicada em 18 de dezembro de 2025)

Todo mês de dezembro, quando um crítico de teatro se posta diante de um teclado para dedilhar seu balanço do ano, muitos caminhos ele pode tomar, diferentes pontos de vista, diversos meios de puxar o fio da meada e se lembrar dos destaques do ano agonizante. Neste final de 2025, olhei para trás e cheguei à conclusão de que, desta vez, uma dessas trilhas se impõe mais do que as outras: o ano foi marcado, sem dúvida nenhuma, pela proliferação de espetáculos inéditos de companhias longevas.

Quase duas dezenas de grupos veteranos, estabelecidos há décadas no reino encantado do fazer teatral de censura livre, estrearam peças para crianças e jovens em 2025. Eis o fio condutor que vai me guiar pelos próximos parágrafos. E estas são as companhias: Cia. da Tribo, Nau de Ícaros, Barracão Cultural, Cia. La Leche, Cia. Delas, Folias, Cia. das Cores, Truks, Vagalum Tum Tum, Esparrama, Maracujá, Coletivo das Galochas,  República Ativa, Fabulinhando, Ventoforte e Coletivo Corpo Aberto.

Cena de Contos Peregrinos. Foto Vitor Campanario

A Cia. da Tribo, grupo, fundado em 1996 pelo casal Milene Perez e Wanderley Pira, dá prioridade total para a cultura popular brasileira, com suas tradições ligadas a mitos, lendas e folguedos das mais variadas localidades nacionais. É Brasil na veia. Desta vez eles jogam toda essa bagagem nativa hipercriativa na direção de três contos vindos de fora – e incorporam brasilidades a narrativas vindas do Japão, de Angola e da Bolívia. Contos Peregrinos nasceu para valorizar a diversidade cultural e aproximar o público de diferentes tradições que também fazem parte da realidade brasileira. 

A Cia Fabulinhando, criada em 2019, surgiu com A Botija, um divertido inventário de histórias fantásticas nordestinas, sobretudo provenientes da oralidade popular do Rio Grande do Norte. É sempre muito gratificante saber da estreia de espetáculos para crianças que celebram as culturas regionalistas, os mitos populares, as histórias orais que não podemos deixar que morram. O teatro é um veículo perfeito para essa valorização e essa celebração de raízes e memórias.

Cena do espetáculo infantil A Botija. Foto Leonardo Souzza

O espetáculo Casa de Vó, do Coletivo Corpo Aberto, com direção de Verônica Avelar, foi muito bem-vindo na modalidade dança-teatro, com público-alvo de crianças entre 4 e 10 anos de idade. O tema? O abuso do crescimento vertical das cidades. A pesquisa foi iniciada em 2023 e levou em conta as vivências do elenco e suas memórias ancestrais. O grupo existe há dez anos e atua na Zona Leste de São Paulo.  Desde o primeiro trabalho para as infâncias, cria diálogos sobre a realidade a partir da ludicidade, acreditando que é possível dialogar sobre o mundo e a cidade com todas as fases da infância. 

A equipe criativa de Casa de Vó. Foto Leonardo Souzza

Com mais de 15 anos de história e uma cartela de espetáculos recheada de adaptações da literatura infanto-juvenil, a Barracão Cultural mergulhou fundo em 2025 no tema tão atual da democracia ameaçada, apoiando-se no livro Rumboldo, de Eva Furnari. Foi um desafio trazer a discussão política, apresentar uma personagem com comportamento de ditador, falar de democracia, de forma leve e gostosa para crianças.

Para celebrar seus 35 anos de trajetória, a premiada Cia. Truks de Animação encenou Serei Sereia, sobre a realidade de preconceitos e limitações que atinge uma criança em sua cadeira de rodas. Por muito tempo fazendo teatro de objetos animados, voltaram a usar manipulação direta de bonecos. Foi desafiador fazer os personagens circularem pelo fundo do mar e ter uma protagonista com poucos movimentos, por ser cadeirante. Mas a coragem de ousar sempre marcou a trajetória da Truks.

Outro grupo que foi parar no fundo do mar foi a Cia. La Leche, à beira de completar 20 anos na estrada. Mar Fantasma falava dos perigos da ditadura e do autoritarismo, um assunto candente e atual. Foi talvez o espetáculo mais marcadamente estético da companhia, a julgar pelo uso bem detalhista da projeção mapeada. Ter música ao vivo também foi luxo dos luxos. 

Ana Paula Lopez e Alessandro Hernandez em Mar Fantasma. Foto Pipe Oliveira

A República Ativa de Teatro, que existe desde 2006, estreou Denis e a Saga do Abraço, que queriam encenar desde 2020, mas houve a interrupção da pandemia. Foram cinco anos de espera, aprofundando as pesquisas. A peça fala de uma menino que certo dia vai à escola usando um vestido da mãe desaparecida e vira, cruelmente, alvo de bullying. Ele só queria ‘sentir’ a mãe, matar saudade, como se a abraçasse por meio do velho vestido, mas é mal interpretado até em casa, pelo pai e irmãos. Um tema delicado tratado com delicadeza.

O grupo Maracujá é velho conhecido do público paulistano. Em 2025 completou 20 anos de existência. Uma equipe animada, que já criou nove espetáculos durante sua bem-sucedida trajetória em São Paulo, mostrou agora Quim & Tal, outra pérola sobre a valorização de nossas memórias. Dois velhos palhaços buscam objetos e brinquedos deixados em quintais, para criar e relembrar de jogos e séries de TV das suas infâncias.

Cena do infantil Quim & Tal, do grupo Maracujá. Foto Deivit Santos

Grupo paulistano de teatro que muito se preocupa em integrar a paisagem urbana à sua dramaturgia, o Esparrama completou 12 anos de trajetória em 2025. Seu mais recente espetáculo ao ar livre, Cidade Brinquedo, foi uma festa contundente e combativa, para falar sobre a precária relação das grandes cidades brasileiras com as infâncias. O espetáculo contava com a participação ativa das crianças na tomada de algumas decisões do enredo.

Depois de transformar várias tragédias de William Shakespeare em peças de censura livre, a Vagalum Tum Tum, companhia capitaneada por Ângelo Brandini, voltou aos palcos em 2025 para mostrar como esse genial dramaturgo se comportava quando era criança. Em As Luvas de Shakespeare, o público era convidado a imaginar a infância do menino Shakespeare, desde quando ele assiste, pela primeira vez, a uma peça de teatro, o que desperta nele o desejo de ser ator e seguir com um grupo de atores mambembes que passa por sua cidade.

Christiane Galvan, David Taiyu e Wesley Salatiel, em As Luvas de Shakespeare. Foto Weslei Soares

O Coletivo de Galochas, que tem 15 anos de jornada, encenou em 2025 a crise climática, para criança entender. Ao montar o espetáculo Barco Mundo, apoiado em máscaras e música ao vivo, o grupo paulistano buscou nas pesquisas da ancestralidade a chave para a compreensão do que pode vir a ser um futuro realmente sustentável. No palco, quatro animais encantados – Onça-Pintada, Macaco-Prego, Perereca-Usina e Cachorro Caramelo. Eles velejavam no barco guiados pela Árvore Ancestral na busca pela Máquina do Lucro, que destruiu a floresta onde moravam.

A exemplo das fábulas, Zizinha, a Árvore e a Sombrinha, novo espetáculo da Cia. das Cores, usou o reino animal para falar de temas sérios do mundo humano: adoção, acolhimento e novos arranjos familiares apoiados apenas no amor. Foi uma excelente ideia fazer a ação se passar dentro de um santuário de animais resgatados de maus-tratos. Outro grupo que mergulhou de cabeça no mundo animal foi o veterano Folias, que chamou a diretora Maristela Chelala para adaptar um livro de Sylvia Orthof, Mudanças no Galinheiro Mudam as Coisas por Inteiro. Uma família de galináceos reproduz um caso típico de relação tóxica entre casais.

Cena do infantil Zizinha, a Árvore e a Sombrinha. Foto Edson Gon

E lá veio a Cia. Cênica Nau de Ícaros, do alto de seus mais de 30 anos de trajetória, encarando o desafio de adaptar O Menino Maluquinho, de Ziraldo, para a linguagem cênica acrobática. Deu muito certo. O diretor Marcelo Romagnoli, pela segunda vez à frente da Nau, encaixou cada intenção dramatúrgica em um número de dança contemporânea e acrocabias circenses.

A Companhia Delas, criada em 2001, encerrou sua trilogia As Três Marias, dedicada a mulheres que revolucionaram a ciência, levando à cena a história da cientista Marie Curie, pioneira na pesquisa de radioatividade. Marie e a Descoberta Luminosa poderia ser uma peça encenada de forma clássica, mas a diretora convidada, Rhena de Faria, optou por manter a linha que o grupo defende desde seu início: a linguagem contemporânea, o ímpeto de ousar no palco, a quebra de linearidade narrativa. Foi um estouro de bom.

Cena de Marie e a Descoberta Luminosa. Foto Lígia Jardim

No caso do Grupo Ventoforte, veteraníssimo e machucado pela brutal demolição de sua sede histórica, os espetáculos de 2025 não eram novos, mas foram feitas releituras importantíssimas de dois clássicos de seu fundador, o saudoso Ilo Krugli, A História do Barquinho e Histórias de Lenços e Ventos. A nova geração assistiu com interesse e o grupo se convenceu de que, a despeito das atrocidades e vilanias, sempre será eterno. 

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Ficha Técnica

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Serviço

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