Monólogo estrelado por Filipe Augusto fortalece a discussão sobre privacidade; autor da peça, o inglês Alexis Gregory conversou com o Canal Teatro MF
Por Ubiratan Brasil (publicada em 25 de novembro de 2025)
Ao receber uma mensagem privada do seu namorado já falecido, Alex inicia uma jornada perigosa em busca da verdade. Esse é o ponto de partida de Fumaça, monólogo escrito pelo inglês Alexis Gregory que ganha uma montagem brasileira estrelada por Filipe Augusto, também tradutor do texto. A peça iniciou temporada no Ágora Teatro, em São Paulo, com a direção de Fernando Vilela.
Ao acompanhar a jornada de Alex, o público se depara com assuntos delicados como autoexposição, uso de drogas, paranoia, vida e morte na era do Instagram e outras redes sociais, quando já não há mais privacidade. Em entrevista ao Canal Teatro MF, o dramaturgo Alexis Gregory conta que a inspiração partiu de uma dolorosa experiência vivida por ele, quando foi hackeado. Também a rotina gay em Londres foi decisiva na escrita (veja mais abaixo).

Filipe Augusto, que dá vida ao protagonista e também é um homem gay com quase 40 anos, diz que vê algumas semelhanças com seu personagem. “Eu me vejo nas marcas deixadas pelo trauma de ter crescido em uma sociedade que fez com que a gente vivesse em um estado de alerta constante. O medo da rejeição, a homofobia dos outros (e aquela que nós mesmos internalizamos), a dificuldade de olhar para uma dor que nos habita e que, se não é encarada de frente, fere nós mesmos e as outras pessoas”, comenta o ator.
Segundo ele, Alex revela uma vontade que beira o desespero para ser entendido e acolhido, além do desejo de se encaixar, ao mesmo tempo que luta por se autoafirmar em um mundo que lhe parece muito hostil. “Eu também já senti e continuo sentindo todas essas coisas em alguns momentos da minha vida. Trabalhar em Fumaça está me fazendo olhar para a minha infância gay no armário muito mais do que eu esperava, para refletir sobre o homem que me tornei. E por que eu desejo tanto me expor ao mesmo tempo em que tenho medo da exposição.”
A dependência de redes sociais, acessadas por aparelhos móveis como celulares, orientou a encenação de Fernando Vilela. “Compreender que temos vivido conectados 24 horas por dia, com o celular na mão o tempo todo, e que tudo é passível de compartilhamento e engajamento nas redes – do assunto mais banal ao mais severo – nos levou ao seguinte pensamento: como dar corpo estrutural a esse fenômeno? Como traduzir essa sensação em linguagem cênica e visual?”, questiona.

Segundo ele, a cenografia reproduz uma espécie de jaula, um espaço de confinamento para os tormentos de Alex, e ainda pode ser vista como um grande ring light, dispositivo essencial de exposição no mundo conectado. Assim, a montagem pretende explorar todas as contradições existentes no próprio mundo das redes sociais. Acompanhe a entrevista de Gregory, que respondeu por e-mail as seguintes questões.
O fato de você ter sido hackeado foi um fator decisivo na escrita de Fumaça?
Sim. O hacker conseguiu gastar meu dinheiro, invadir, ou tentar invadir, todas as minhas contas de redes sociais, meu e-mail, meu eBay e meu PayPal. Ele também garantiu que eu recebesse 400 e-mails automatizados em uma única noite, numa tentativa de me sobrecarregar e me distrair. Outro fator decisivo na criação de Fumaça foi meu dia a dia em Londres, vendo a morte de mais um homem gay por drogas ou suicídio anunciada no meu feed de notícias. Ou, como exploramos na peça, a suposição tácita que fazemos sobre a causa.
O que você acha que Fumaça tem a dizer sobre a vida gay na década de 2020?
É uma peça muito atual. Embora os problemas com drogas não sejam novidade para pessoas queer, em Londres parece uma nova onda. Mesmo antes de Filipe (Augusto) me abordar sobre a apresentação no Brasil, eu já sabia que vocês também tinham um problema com a comunidade por lá. Fumaça apresenta uma história queer oculta, que vai além do chemsex (uso de determinadas substâncias para aumentar o prazer na hora do sexo) e também reflete os homens gays que vejo no meu feed de notícias filmando e publicando seus episódios psicóticos. Também relaciono esses episódios a teorias da conspiração modernas. Novamente, muitas vezes presumimos, correta ou não, que esse comportamento está relacionado a drogas. Não vi esses aspectos específicos das experiências de alguns homens gays retratados em outros lugares.
Pessoas queer ainda podem se sentir sozinhas e isoladas, e a conexão online pode, claro, ajudar nesse sentido, mas também intensificá-lo. Então, como o acesso na era digital pode ser tanto um desafio quanto um perigo?
Estamos mais conectados, mas também mais isolados do que nunca. As conexões online podem funcionar, é claro, ou podem isolar o usuário. Pessoas queer foram pioneiras no uso da tecnologia para conhecer outras pessoas queer. Os novos avanços tecnológicos são frequentemente testados primeiro em gays.
Como foi criar uma “personalidade” para o celular?
Não penso no celular como uma personalidade adicional, mas quando encenamos a peça em Londres, meu diretor me incentivou a pensar na plateia como o outro personagem. Alex, o protagonista, se dirige diretamente a eles, envolvendo-os na ação. Em Londres, o único objeto de cena na peça é o celular de Alex. Como todos sabemos, nossas vidas são guiadas pelas máquinas que carregamos no bolso atualmente.
Você é ator e escritor, até que ponto a escrita te atraiu para criar o tipo de trabalho que você deseja interpretar?
Totalmente. Escrever e atuar andam de mãos dadas para mim. Eu crio histórias que quero explorar e compartilhar com o público. Adoro me comunicar com o público e tenho a sorte de ter duas maneiras de fazer isso: atuando e escrevendo.
Quando você começou a pensar que sua própria vida poderia ser matéria-prima para a ficção?
Provavelmente há um pouco de mim em todo o meu trabalho e em todos os personagens que crio. Fumaça é baseado em minhas próprias experiências e também no que testemunhei. Cada momento em Fumaça nasce da verdade. Talvez eu tenha “forçado” essa verdade ao máximo, mas todas as ações de Alex são completamente críveis para mim e com as quais o público pode se identificar, especialmente se conhecer e entender um certo universo queer.
Você se permite liberdades diferentes quando conta histórias no papel?
No caso de Fumaça, sim. Alex é tão selvagem e malcomportado que percebi logo no início da sua criação que ele é capaz de fazer qualquer coisa sem medo das consequências. Isso significa que foi emocionante para mim como escritor, espero que para Filipe quando ele estiver interpretando o papel e, claro, para o público.
Qual você considera ser o papel ou a responsabilidade do escritor na esfera pública?
Só posso falar por mim, pois cada escritor precisa decidir por si o quanto de responsabilidade deseja assumir. Não acho que haja nada de errado em criar uma obra que seja “apenas” puro entretenimento. Fumaça certamente é divertida. É repleta de humor irreverente, e o público londrino a captou perfeitamente. Gostaria de saber se o público internacional terá uma reação semelhante. Precisarei perguntar ao Filipe. Não tenho interesse em criar obras que não emocionem as pessoas e provoquem uma resposta visceral genuína, seja ela lágrimas, risos ou uma expansão da mente. Esse é o meu desejo inato como escritor.
A política atual desempenha um papel igualmente importante na sua prática?
Sim, todo o meu trabalho é político. Exploro questões queer, frequentemente inserindo-as no contexto social e político mais amplo. Por exemplo, Alex em Fumaça está vivenciando uma experiência muito específica para pessoas queer. No entanto, muitas pessoas no mundo atual lutam para sobreviver e são guiadas por seus traumas, então, nesse sentido, a política de Fumaça se estende de fato.
Pessoas queer ainda vivem vidas complexas e desafiadoras, muitas vezes à margem da sociedade. Como podemos provar que somos mais do que isso?
Há trabalhos que destacam aspectos mais convencionais, organizados, afirmativos e talvez mais seguros e palatáveis da vida queer, e isso é ótimo. Pessoalmente, sempre explorei os aspectos complexos, desafiadores e à margem da sociedade em nossas vidas. Para mim, é aí que está o tesouro.
Serviço
Fumaça
Ágora Teatro. Rua Rui Barbosa, 664
Sábados, 20h. Domingos, 19h. R$ 100
Até 7 de dezembro (estreou em 22 de novembro)
