Reverência ao disco gravado em 1975, espetáculo celebra as raízes e contradições de um povo que, apesar da precariedade e do esquecimento, insiste em florescer; encenação no Sesc Consolação destaca o real e o mitológico, o cômico e o trágico, o íntimo e o político, em um emaranhado de beleza e crítica
Por Redação Canal Teatro MF (publicada em 3 de novembro de 2025)
Lá se vão cinquenta anos que Gilberto Gil, após o período vivido no exílio em Londres, lançou o álbum Refazenda. Nele o músico explora a sonoridade do forró e os ritmos nordestinos, fazendo um percurso de volta ao país, um retrato da saudade por um tempo vivido na Europa, em função da ditadura militar. O uso do prefixo “re” indica a ideia da retomada, uma viagem de retorno.
É esse caminho de volta que o Grupo 59 de Teatro explora no espetáculo Jeca – Um Povo Ainda Há de Vingar, em cartaz no Teatro Anchieta. A montagem, musical livremente inspirado no disco, acompanha a jornada de emancipação de um homem do povo a partir da conexão com suas raízes. É nessa viagem de retorno ao seu lugar de infância – feita por quem saiu para se encontrar e agora, mais velho, regressa para se reconhecer – que o espectador acompanha a trajetória de um Brasil plural e contraditório, em busca de um sentido de vida profundamente vinculado à terra.
Com direção de Kleber Montanheiro e dramaturgia de Lucas Moura da Conceição e Marcelino Freire, o elenco do Grupo 59 de Teatro apresenta as personagens descritas nas letras das canções do álbum com contextos musicais e político-históricos das décadas de 60 e 70, que espectadores poderão relacionar livremente à trajetória de Jeca Total e a própria biografia do cantor e ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil. Sem compromissos com narrativas documentais ou verídicas, no enredo fictício o protagonista Jeca é um cantador que, nascido no sertão, ganha o mundo com sua voz e poesia, mas não sem sofrer as dores do exílio e da emancipação.

Segundo o dramaturgo Lucas Moura da Conceição, o espetáculo bebe na essência desse primeiro álbum da Trilogia Re em que “tudo se trata de tecnologia sertaneja; da caminha dura que fortalece a coluna e o espírito para os garimpos da alma rumo à sede de uma terra que impulsiona o novo; da banalidade profunda contida nos retiros silenciosos das paisagens áridas ao festejo da alegria de um povo resiliente (Ê povo, ê!). Nessa celebração da tecnologia ancestral sertaneja, Jeca Total é seu mito alegórico e Refazenda sua ação revolucionária e seu hino”.
A encenação utiliza recursos cênicos que traduzem uma narrativa espiralar e lírica. No centro do palco, um praticável circular alude ao abacateiro (parceiro solitário de Jeca, inspirado na canção Refazenda, do álbum homônimo), marco simbólico e temporal da peça; é a ele, seu “velho amigo”, que Jeca recorre como cúmplice em sua trajetória. Em volta do abacateiro, módulos de madeira mimetizam caixas de feira, onde se vendem frutas, discos e prosas, rezas e fé.
Para Kleber Montanheiro, Jeca – Um Povo Ainda Há de Vingar dialoga diretamente com um momento muito especial da cena contemporânea do teatro musical. “Esse gênero atravessou muitas transformações desde o teatro de revista no final do século XIX, depois o Arena nas décadas de 60 e 70 com forte teor social e político, até a explosão dos musicais influenciados pelo modelo da Broadway nos anos 2000, seguidos da ênfase em peças biográficas dos últimos anos. Se houve avanços (e houve muitos, sobretudo ligados à profissionalização dos performers), por outro lado se observa uma certa escassez de dramaturgias musicais autorais brasileiras. E é essa a qualidade e a autenticidade que uma dramaturgia como a de Jeca, ancorada em pesquisa e brasilidade, simboliza e representa.”
Serviço
Jeca – Um Povo Ainda Há de Vingar
Sesc Consolação – Teatro Anchieta. Rua Dr. Vila Nova, 245
Quinta a sábado, 20h. Domingos e feriados, 18h. Sessão vespertina dia 05/11, quarta, 15h. R$ 70
Até 23 de novembro (estreou 24 de outubro)
