Peça de Bosco Brasil, consagrada por Dan Stulbach e Tony Ramos, estreia dirigida por Eric Lenate, que contracena com Fernando Billi
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 29 de outubro de 2025)
Lá pelo começo da década de 2000, o futuro ator e diretor Eric Lenate, hoje com 43 anos, pegava um ônibus em Guarulhos para se aventurar nos teatros paulistanos. Em uma destas noites, assistiu à peça Novas Diretrizes em Tempos de Paz, escrita por Bosco Brasil e dirigida por Ariela Goldmann, no antigo Teatro Hilton. O jovem, que já participava de peças amadoras em sua cidade, vendo os atores Dan Stulbach e Tony Ramos em cena foi tomado por um entusiasmo definidor para o seu futuro. “É isso que eu quero fazer da minha vida”, pensou. “Fui dominado por uma emoção que não tinha maturidade para explicar.”
Novas Diretrizes em Tempos de Paz virou uma obsessão quando o assunto era referência de bom teatro. Lenate seguiu seus passos, trabalhou com os diretores Mário Bortolotto e Reginaldo Nascimento até ingressar em 2005 no CPT (Centro de Pesquisa Teatral) de Antunes Filho (1929-2019), o que moldaria sua trajetória e revelaria o seu talento, principalmente como encenador.
De tempos em tempos, ele voltava ao texto, publicado em livro em 2007, e algo de novo sempre se revelava. Até quem 2022, Lenate pediu a Bosco Brasil a liberação dos direitos autorais para montar Novas Diretrizes em Tempos de Paz e recebeu um “não”. O autor considerou que a época, fase final da pandemia, não era propícia para retomar a história e, esporadicamente, o persistente diretor voltava a contatar o dramaturgo. A afirmativa veio no começo de 2024. “Eu tinha certeza de que, além de dirigir, faria como ator, só não sabia qual dos dois personagens”, lembra.

Novas Diretrizes em Tempos de Paz, o espetáculo de Eric Lenate, estreia na sexta, 31, no Teatro Estúdio, em São Paulo, depois de uma experiência traumática em seu lançamento na 17ª Fita – Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis, em 23 de agosto. Um problema técnico nos microfones praticamente inviabilizou a audição do texto em grande parte da apresentação e, mesmo assim, o impacto da nova versão não deixou os espectadores indiferentes.
Lenate contracena com o ator Fernando Billi sobre um cenário giratório em constante movimento tendo como fundo uma trilha sonora que não dá trégua mesmo durante os diálogos – justificativa para a microfonia. Teatro é ao vivo e aberto aos imprevistos. Se mesmo vista em condições desfavoráveis, a peça é arrebatadora, em condições técnicas perfeitas, quem sabe, beire o sublime.
O diretor assume o personagem que consagrou Stulbach, o imigrante polonês Clausewitz, que desembarca no porto do Rio de Janeiro em 1945, final da Segunda Guerra Mundial, em busca de uma vida como agricultor. Na alfândega, o imigrante é interrogado por Segismundo (o ator Fernando Billi, no papel popularizado por Tony Ramos), que desconfia de que Clausewitz seja um nazista porque, entre tantas contradições, suas mãos finas e sem calos não se parecem com as de alguém que lida com a terra.
O inquérito assume caminhos surpreendentes em que a sensibilidade dos dois será testada para definir os seus destinos e, não à toa, o texto de Bosco Brasil emocionou tantos fãs desde o começo dos anos de 2000. “São dois homens em um estado de iminência extrema de suas vidas e, por isso, este encontro é tão forte”, observa o diretor.
O paulistano Fernando Billi, de 37 anos, foi morar na Itália aos 11, fez faculdade nos Estados Unidos e voltou ao Brasil com 27, há uma década. Não assistiu à montagem original, viu sem entusiasmo o filme Tempos de Paz, dirigido por Daniel Filho em 2009 com Ramos e Stulbach nos mesmos papéis, e garante que sua referência é a reação das pessoas quando se lembram da peça – o que lhe faz crer que pode ter sido algo excepcional.
Com passagens pelo audiovisual, Billi participou de apenas duas outras montagens, The Money Shot (2023) e Névoa (2024), comandadas respectivamente por Lenate e Lavínia Pannunzio, e garante que encontrou no palco o melhor veículo para o exercício da vocação. “É impressionante a diferença de uma linguagem para outra e, agora, entendo porque um artista formado no teatro tira de letra o trabalho na televisão”, compara.
O encantamento de Billi é compreensível. O processo de Novas Diretrizes em Tempos de Paz foi tão incomum que parece utópico. Quando Lenate percebeu que Billi, mesmo pouco experiente, seria o seu parceiro ideal, em junho do ano passado, os dois começaram uma imersão de cinco meses sozinhos para o estudo de texto e as definições de composições dos personagens. “Tocamos o processo sem ficar refém de data de estreia ou definição de orçamento aproveitando a liberdade de produzir com recursos próprios”, revela o encenador. “Em novembro, com o nosso trabalho encorpado, o Vitor Julian se juntou a nós como codiretor e chamamos o resto da equipe para, em janeiro, criar cenário, iluminação e trilha sonora.”

Entre fevereiro e março, Lenate viu que tinha um espetáculo construído e convidou pessoas de sua confiança para ouvir opiniões sobre o trabalho. Foram dez ensaios abertos e, entre os presentes, apareceram Stulbach e Jairo Mattos, que interpretou Segismundo nas primeiras apresentações da peça, em 2001, antes de Tony Ramos assumir o personagem na temporada carioca. “Tanto o Dan quanto o Jairo ficaram emocionados e acredito que um filme tenha passado na cabeça deles, mas o que nos deixou seguros é que muita gente comentou que ressaltamos questões que não eram tão evidentes antes”, diz.
Para o diretor, Segismundo é uma figura exemplar do cidadão brasileiro entregue ao cotidiano e a uma ideia fixa de ideologia que ele mesmo não tem condições de dimensionar os possíveis estragos. “Uma grande reflexão da peça é de que até que ponto a gente é o sujeito das nossas atitudes ou estamos sujeitos ao próprio processo”, indaga Lenate, levantando a questão.
Billi ressalta que, se forem estabelecidas comparações entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva nos finais da década de 1990 e começo dos anos 2000 com os efeitos da administração recente de Jair Bolsonaro, a peça resulta mais forte nos dias de hoje. O ator pede licença, porém, para deixar um pouco de lado a leitura política e se deter ao que chama de “uma carta de amor à perseverança teatral” – e é disto, principalmente, que se trata Novas Diretrizes em Tempos de Paz.
“Eu sou um ator e, como fala no texto, não sei se isso serve para alguma coisa, mas é o que quero fazer todos os dias da minha vida”, destaca Billi. “Então, para mim, esta peça é uma declaração de amor ao teatro tão forte como Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore, é para o cinema.”
Serviço
Novas Diretrizes em Tempos de Paz
Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891
Sexta e sábado, 20h. Domingo, 16h. R$ 80
Até 8 de fevereiro (estreia 31 de outubro – não haverá sessões entre 22 de dezembro e 8 de janeiro)
