O diretor Eduardo Tolentino de Araujo define a peça, que estreia no Teatro Nair Bello, como a história de um homem que joga a mulher nos braços de outro
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 22 de outubro de 2025)
“Por que montar A Mulher Sem Pecado?”, pergunta o repórter ao diretor Eduardo Tolentino de Araujo, de 70 anos. O fundador do Grupo Tapa rebate de imediato à provocação com outra interrogação, antes de listar uma série de justificativas. “Por que não montar A Mulher Sem Pecado?”.
Primeira e pouco lembrada peça de Nelson Rodrigues (1912-1980), o texto escrito em 1941 foi ofuscado pela consagradora encenação de Vestido de Noiva, no Teatro Municipal do Rio, dois anos depois, sob o comando do polonês Ziembinski (1908-1978). É como se nada tivesse acontecido antes na obra do grande dramaturgo brasileiro e, pelas décadas seguintes, ele mesmo se esforçaria para radicalizar cada vez mais em suas temáticas a ponto de deixar A Mulher sem Pecado com a marca de um trabalho menor de estreante.

Tolentino, porém, lista argumentos para valorizar o novo objeto de encenação. “É curioso que vários elementos desenvolvidos no decorrer da obra de Nelson já se encontram lá”, diz. Para ele, A Mulher sem Pecado, que estreia nesta sexta, 24, no Teatro Nair Bello, no 3º andar do Shopping Frei Caneca, coloca o feminino no palco e sobrevive bem ao tempo e aos discursos da contemporaneidade, inclusive para provar que Nelson não é tão machista assim, como costuma ser acusado. “Ele justifica a traição da mulher que bate a porta da casa, como se fosse uma Nora tropical, só que para cair nos braços de outro”, compara, em referência ao clássico Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (1828-1906).
A trama é centrada no obsessivo Olegário (interpretado por André Garolli) que, paralisado há sete meses, prostou-se em uma cadeira de rodas como um protagonista da própria tragédia. Dominado pelo ciúme, ele testa de todas as formas a fidelidade da mulher, Lídia (papel de Eugenia Granha), sem encontrar vestígios de traição. Enfim, convencido da lealdade, Olegário assume a farsa ao se levantar da cadeira de rodas, enquanto Lídia, exausta das desconfianças, foge com o motorista (representado por Bruno Barchesi).
Tolentino propõe uma reflexão sobre o moralismo em uma radiografia do casamento na década de 1940 e explora uma estética expressionista no trânsito entre o real e o imaginário. “A peça é sobre um homem que perdeu o desejo pela mulher e a jogou nos braços de outro”, observa. “Olegário é tão autocentrado que se só sentia forte e potente quando manifestava o poder fálico e, por isso, a questão da cadeira de rodas não deve ser vista de forma tão literal.”
A Mulher sem Pecado é a sexta incursão do Grupo Tapa ao universo de Nelson Rodrigues. Depois de Viúva, Porém Honesta (1984), Vestido de Noiva (1994), A Serpente (1999), Valsa Nº 6 (2010) e Anti-Nelson Rodrigues (2014), Tolentino fecha o ciclo das peças psicológicas, designação estabelecida pelo crítico Sábato Magaldi (1927-2016), organizador da dramaturgia do autor na década de 1980.
“Mesmo que Sábato tenha tratado A Serpente como tragédia carioca, ela é mais psicológica e tem afinidades com A Mulher sem Pecado, que, aliás, é A Serpente e Vestido de Noiva sem o véu, a grinalda e o bolo”, define o diretor. “Eu não sei se a peça faria algum sentido na Suécia, mas em qualquer país mediterrâneo o medo de ser traído ronda a cabeça dos homens e, assim, ela se conserva atual.”

Neste repertório, somente Vestido de Noiva pode ser considerado um clássico, e Tolentino critica a acomodação de artistas que se limitam a encenar títulos famosos e colaboram para que grandes dramaturgias caiam no esquecimento. “Somos um país conservador até nisto”, diz.
Na trajetória do próprio Tapa, ele cita que o primeiro espetáculo baseado no russo Anton Tchekhov (1860-1904) foi o pouco conhecido Ivanov, produzido em 1998, para, somente na última década, com todos mais experientes, apostar em O Jardim das Cerejeiras e Tio Vânia, obras-primas incontestáveis.
“Ao montar as obras periféricas, entendemos elementos fundamentais de um autor e vira um caminho de mão-dupla”, afirma. “Quando fizemos Viúva, Porém Honesta, em 1984, ganhamos prêmios, fomos convidados para viajar ao exterior pela primeira vez e a peça passou a ser vista com outros olhos no Brasil até pelos admiradores de Nelson.”
Além de Garolli, Barchesi e Eugenia, o elenco é completado pelos atores Felipe Souza e Mauricio Bittencourt e as atrizes Ana Carlota France e Loise Teyber. Conhecido pelo olhar afiado para lançar e formar intérpretes, Tolentino chama a atenção para Eugenia Granha, estreante no teatro dramático na pele de Lídia. Aos 35 anos, ela teve uma carreira de bailarina profissional com passagem pelo Balé da Cidade de São Paulo, frequenta os cursos do Tapa há quatro anos e surpreendeu o diretor em um exercício de atuação em que representou Alaíde, a protagonista de Vestido de Noiva. “É a pessoa que estava no lugar certo na hora certa e demonstra um potencial que justifica a aposta”, garante.
O Grupo Tapa pode ainda ser visto em São Paulo com o espetáculo Freud e o Visitante, que ocupa as noites de quartas e quintas no Teatro Faap desde o dia 22. A peça do belga Éric-Emmanuel Schmitt, em cartaz desde 2023, confronta Sigmund Freud (interpretado por Brian Penido Ross) e um estranho sujeito (papel de Barchesi) que invade o seu consultório na época em que os alemães dominaram a Áustria, em 1938. “É uma peça que despertou o interesse de um segmento, no caso o de médicos, psicanalistas e analisandos, e gerou um boca a boca porque mexe com temas que contrastam visões, como religiosidade e ateísmo”, declara.

No dia 3, Duas Máscaras Nuas, montagem composta por dois textos do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), Cecé e O Homem com a Flor na Boca, volta ao cartaz no Galpão do Tapa, na Barra Funda. Os atores André Garolli, Antoniela Canto e Norival Rizo assumem os personagens. Entre janeiro e fevereiro, Tolentino leva Credores, de August Strindberg (1849-1912), com Garolli, Barchesi e Sandra Corveloni, para o Teatro Poeira, no Rio, e pensa que, lá por junho ou julho, deve estrear uma produção maior e inédita.
“Só neste ano, eu lancei A Falecida Senhora Sua Mãe e Não Andes Nua Por Aí, de Georges Feydeau, Duas Máscaras Nuas e A Mulher Sem Pecado, retomei Tio Vânia e Credores, além de continuar com Freud e o Visitante, então está bom, não é?”, enumera. “A gente precisa se manter vivo, sem se lamentar e eu me sinto como o Othon Bastos: ‘não me entrego, não!’ (risos)”
Serviço
A Mulher Sem Pecado
Teatro Nair Bello. Shopping Frei Caneca. Rua Frei Caneca, 569, 3º andar
Sexta e sábado, 20h. Domingo, 18h. R$ 120
Até 7 de dezembro (estreia 24 de outubro)
