As atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann são dirigidas por Cesar Ribeiro em peça que entrelaça questões subjetivas e de identidade
Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 16 de outubro de 2025)
O espetáculo Projeto Clarice, que estreia nesta quinta, 16, no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, pode parecer um bicho estranho na obra do diretor Cesar Ribeiro. Só nas duas últimas temporadas, o encenador colocou no palco fragmentos do autoritarismo político em Dias e Noites de Amor e de Guerra, Prontuário 12.528 e Trilogia Kafka, tema já explorado em O Arquiteto e o Imperador da Assíria (2022), de Fernando Arrabal, e Dias Felizes (2023), de Samuel Beckett.
Agora, causa surpresa uma dramaturgia baseada em cinco contos da escritora Clarice Lispector (1920-1977), protagonizada pelas atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann. “Na verdade, eu comecei criando em cima de originais literários de Fiodor Dostoiévski, Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe e, só na metade dos anos de 2010, depois de Esperando Godot, de Beckett, passei a trabalhar com peças prontas, então é um retorno à minha autoralidade.”
Reflexões sobre o universo feminino, temas subjetivos, a transformação do cotidiano, a autora, considerada a maior da literatura brasileira, é tudo isso, mas, na releitura de Ribeiro, atinge camadas que respingam na violência que marca a formação da humanidade. “Estamos tratando das mesmas desgraças dos meus espetáculos anteriores só que de um ponto de vista diferente”, explica. “A cena final de Trilogia Kafka, Carta ao Pai, já era um apontamento para Clarice porque mostrava corpos em situações extremas.”

Clara, Magali, Mariana e Vera interpretam em monólogos ou diálogos os contos Via Crucis, Menino a Bico de Pena, A Legião Estrangeira, Amor e O Ovo e a Galinha. Em comum, as histórias lidam com a mulher dentro de um ambiente doméstico abalado por epifanias e um alto grau de questionamento social. “A escolha dos textos revela faces que se desagregam na construção do feminino”, aponta o diretor e adaptador.
Na primeira cena, Via Crucis, o quarteto apresenta uma espécie de parábola do nascimento de Jesus Cristo, com Clara na narração, Mariana como Maria, Vera na representação de José e Magali no papel da ginecologista. “É um presépio que define a linha-mestra da montagem, que é a maternidade, a mulher como geradora e replicadora da vida”, define Clara. A seguir, Vera assume as três vozes de Menino a Bico de Pena, a da narradora, a do garoto e a da mãe, ressaltando três diferentes pensamentos.
Depois, Mariana conduz a narrativa de A Legião Estrangeira, sobre a relação entre mãe e filha, representadas por Magali e Vera, que é seguida pela encenação do conto Amor, protagonizado por Clara como a dona de casa que entra em uma crise existencial. Por fim, Magali interpreta a divagação metafísica de O Ovo e a Galinha, sobre a incompreensão diante da origem e do ciclo da vida. “A gente brinca nos ensaios que O Ovo e a Galinha é uma reflexão da personagem de Amor no dia seguinte”, comenta Magali. “Não é uma história fácil, e o público pode entender pouco, mas a meta desta minha realização é que se ele possa sentir tudo intensamente.”
Com formação em física, Magali descobriu a obra de Clarice através da novela Água Viva sob um olhar quase científico. “Eu me apaixonei por aquela escrita filosófica, e a leitura não avançava porque parava a cada parágrafo tomada por uma avalanche de sentimentos”, lembra a intérprete. “Todo físico deseja uma explicação sobre o comportamento do universo e, para mim, que ainda sou artista, Clarice fascina porque nos joga em abismos que afetam de diferentes formas.”

Mariana, por sua vez, conheceu a autora com os contos de Laços de Família e, décadas depois, comenta que permanece a sensação de revés, onde esperava alguma situação de um jeito, acontecia outra que a desconcertava e mostrava formas diversas de ser das coisas. “Desde então, volto a Clarice com frequência porque ela me alimenta, me refaz e, assim, me revisito na capacidade de me surpreender e estranhar o cotidiano”, justifica a atriz. “Pensando no conto A Legião Estrangeira, que me coube encabeçar na encenação, diria que, dentre todos, é o único que envolve o diálogo e tem uma movimentação elaborada, inclusive do ponto de vista dançante.”
Laços de Família também marcou a iniciação de Clara Carvalho, ainda nos tempos de escola, no mundo de Clarice, em que tudo parecia simples, mas não era. Um pouco mais tarde, ela se encantou pelos romances A Hora da Estrela e A Paixão Segundo GH, lidos e relidos em diferentes etapas da vida, sempre com visões diferentes. “Clarice é um mistério, tem sempre um chão falso que não conseguimos acessar e a leitura nunca é definitiva”, observa.
Clara chama a atenção, entretanto, para a influência da escritora na sua formação como mulher e artista, porque sua literatura é resultado de um raro estofo adquirido na vida. “Clarice conseguiu dar conta da configuração tradicional de dona de casa, esposa e mãe e alcançou brilhantismo profissional e intelectual, então é como se nos estimulasse a dar conta da complexidade de viver.”
Ao contrário das colegas, Vera Zimmermann despertou para o universo de Clarice através do audiovisual. O primeiro contato foi com o filme A Hora da Estrela, dirigido por Suzana Amaral em 1985 com a atriz Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa, a imigrante nordestina tragada pela cidade grande. “Aquilo me pegou de um jeito que me levou para as profundezas da indignação”, recorda. “Macabéa só vira estrela ao ser atropelada por um carro de luxo.”
Vera ainda comenta que ficou hipnotizada com uma entrevista da autora exibida pela TV Cultura e outra série de áudios gravada pelo Museu da Imagem e do Som que a levou a procurar Clarice: Uma Biografia, publicada pelo crítico e escritor norte-americano Benjamin Moser em 2009. “Foi um caminho interessante porque primeiro conheci a mulher para depois me aprofundar na sua obra”, reconhece a artista. “Por isso, a nossa aposta é que o espetáculo agradará quem é leitor de Clarice e despertará a curiosidade de quem ainda não é íntimo de seus livros.”
Serviço
Projeto Clarice
Teatro Cacilda Becker. Rua Tito, 295, Lapa
Quinta a sábado, 20h30. Domingo, 19h. R$ 20
Até 9 de novembro (estreia 16 de outubro)
