A devastação de uma família é exposta em texto escrito e dirigido por Sergio Mello, a partir do encontro de uma irmã e um irmão em uma casa da periferia de São Paulo – tudo se passa em um entardecer quando as memórias dolorosas são apresentadas
Por Redação Canal Teatro MF (publicada em 22 de setembro de 2025)
O universo familiar é vasto em histórias que desencadeiam textos contundentes tanto no teatro como no cinema. Da dramaturgia de Nelson Rodrigues, que explora as relações entre mães, pais, filhos e irmãos de forma doentia, à cena clássica do filme dinamarquês A Festa, de Thomas Vinterberg, no qual um jantar de aniversário se torna palco de revelação de segredos familiares terríveis, não faltam boas referências para situar formas tóxicas de relações nesta instituição, a família.
O dramaturgo e diretor Sergio Mello escutou uma frase dita pela atriz Cássia Kiss na ocasião em que ela encenava, com direção de Ulysses Cruz, o texto O Zoológico de Vidro, de Tennessee Williams: “Uma família pode ser mais devastadora que uma guerra”. A frase veio a partir da dramaturgia do estadunidense, escrita em 1944, que retrata o universo de uma família americana durante a Grande Depressão. Mello se inspirou nesta frase para construir a dramaturgia de Ladeira em Carrinhos de Supermercado, que estreia no Teatro Manás Laboratório.
O texto, escrito em 2009, revela duas personagens à beira de uma situação limite, a partir do encontro entre os irmãos Lia, interpretada pela atriz Rebecca Leão e Ivo, pelo ator Igor Kovalewski. Em uma casa da periferia de São Paulo, numa única tarde, e, conforme a noite se aproxima e o cenário escurece, deixando o clima mais tenso e ameaçador, acompanha-se o “dramão” familiar, como o próprio autor define, em um encontro, pontuado por doçura, hostilidade, sarcasmo e decoro. Os dois ressuscitam personagens e fatos traumáticos do passado de ambos. À sombra de um pai sádico e de uma mãe esquizofrênica, na visão do irmão, mas contestada pela irmã, as duas personagens se enfrentam em um embate intenso.

“Ele, deprimido, nunca se fixou em um relacionamento, um emprego. Ela, num casamento falido, o cara já foi embora, cortou a luz e ela não arreda o pé da casa, onde nada acende, nada funciona, sobra um toquinho de vela. O que sobrou dessas duas figuras?”, questiona-se Mello.
O autor e encenador se aproveita do espaço intimista da sala de espetáculos, com capacidade para 50 pessoas, para acomodar a plateia, no interior dessa casa, no sentido figurado, promovendo uma intimidade do público com os atores. Mello buscou uma encenação contida, com pouco movimento e a luz desempenhando papel fundamental: “Quase cinema, um clima pinteriano”, diz, explicando a alusão em referência à simplicidade com que Harold Pinter (1930-2008) dizia encenar suas peças. “Em vários momentos a peça beira o absurdo também”, completa Mello, também se voltando a Pinter na questão do teatro do absurdo.
A história de uma família depauperada se desenrola em 60 minutos, sob o desenho de luz – que, no caso, é quase uma terceira personagem do espetáculo – de Gabriel Greghi. No piso do palco, uma lona de caminhão, móveis de madeira escura e aspecto encardido, além de objetos de uma casa que está se deteriorando, como as luzes que não acendem.
Em contraposição ao cenário e objetos em tons pastéis, o figurino foi concebido pelo diretor para lembrar, nas cores e estilo, que suas referências estão no cinema – Pedro Almodóvar e Sam Sheppard. Dois momentos sonoros abrem e fecham a peça, como uma pontuação musical, respectivamente, Prelude for Meditation, de John Cage, e a composição sacra do século 10, Os Justi, de Anton Bruckner.
Serviço
Ladeira em Carrinhos de Supermercado
Teatro Manás Laboratório. Rua 13 de Maio, 222.
Sextas e sábados, 21h. Domingos, 19h. R$ 60
Até 26 de outubro (estreia 3 de outubro)
