O melhor do teatro está aqui

HANNA - BANNER-MORENTEFORTE-3033X375-

Uma palhaça que sabe como amolecer as tristezas

Sinopse

Apoiada por recursos de acessibilidade integrados à cena, Priscila Jácomo renova seu resiliente solo de palhaçaria e volta a São Paulo para falar de diversidade com muito humor, tendo como base toda a sabedoria da cultura indígena

Por Dib Carneiro Neto (publicada em 12 de setembro de 2025)

Não é um espetáculo inédito. Já tem quase uma década de circulação no Brasil e até no exterior. Mas ele foi renovado, ganhou atualizações de texto e montagem. O solo S.O.S. Quase Tudo, criado e interpretado pela palhaça Priscila Jácomo, agora virou S.O.S. Quase Tudo (De Outro Jeito!). A principal novidade? Agora, há a integração da acessibilidade ao jogo cênico. As apresentações acontecem nos dias 13 e 14 de setembro, sábado e domingo, às 16h, no Teatro Paulo Eiró, e 20 e 21 de setembro, sábado e domingo, às 16h, no Teatro Alfredo Mesquita. Em outubro e novembro, o espetáculo segue em circulação gratuita por outros espaços da cidade.

“Uma brincadeira que a gente propõe no espetáculo é que algumas coisas só serão percebidas pelas pessoas com deficiência visual e surdas”, adianta Priscila. “Os ‘enxergantes’ e ouvintes sempre foram privilegiados – está tudo bem não entenderem todas as coisas deta vez! Os intérpretes de libras terão uma cumplicidade especial com o público surdo e podem contar coisas que as pessoas que não conhecem libras não entenderão. A mesma cumplicidade vai acontecer com a audiodescrição.”

Cena de Conectando, do solo S.O.S. Quase Tudo (De Outro Jeito!). Foto Isabela Jàcomo

A temática do espetáculo é toda voltada para a valorização das diferenças e a peça também bebe muito na fonte da cultura indígena, historicamente tão desprezada e alvo de preconceitos. Priscila Jácomo pesquisou o que chama de “fazedores de riso” indígenas. Ela diz: “Eles ensinam as pessoas a lidar com as diversidades, a compreender singularidades. Suas traquinagens e trapalhadas ensinam, curam e fortalecem as pessoas. Quando a gente ri, de algum jeito a gente amolece certezas.” 

Priscila conta que até já mudou partes do solo, a partir da resposta das crianças. E tem um jeito muito bonito de explicar de que forma a palhaçaria se presta bem ao tema da diversidade: “Quando eu afirmo a minha diferença, eu afirmo a sua também. A gente se conecta nesse lugar. Sua trapalhada não é igual à minha, mas você também se atrapalha. Sinto que a conexão, o amor, nasce daí. Amar o outro pela sua versão mais singular. Aquilo que só você tem é o que me faz amar você. Sinto que o planeta está precisando de amor e de palhaças.”

Leia a íntegra da entrevista com Priscila Jácomo e se encante com sua empolgação e sua singularidade: 

Dê alguns exemplos concretos de como o público vai ver que a acessibilidade está integrada organicamente à cena.
Em S.O.S. Quase Tudo (de outro jeito!), eu sou uma bruxa-palhaça-sensitiva, que tem um programa de televisão. Na primeira versão do espetáculo, eu apresentava o programa sozinha. Agora venho acompanhada de dois assistentes de palco, o intérprete de Libras Fabiano Campos e a audiodescritora Andreia Paiva. A cabine de audiodescrição, que normalmente é preta e fica escondidinha, agora estará no palco, colorida, como parte do cenário. A audiodescritora fará a narração de lá. O intérprete de Libras, que normalmente fica discreto no cantinho, estará ao meu lado o tempo todo, como cúmplice. Nós dois falamos a mesma coisa só que de jeitos diferentes. A brincadeira é que a equipe de acessibilidade acumula funções. Os dois também serão os “petecas”, meus assistentes de palco. E com um figurino colorido como o meu. A ideia é inverter o jogo de verdade: se normalmente a acessibilidade é discreta e quase não é vista, em S.O.S. Quase Tudo (de outro jeito!) ela vai ficar escancarada. As transformações que acontecerem no espetáculo vão afetar as pessoas que enxergam e que escutam também. Por exemplo, no início do espetáculo a bruxa-palhaça brinca com o corpo revelando um desequilíbrio. A proposta da Cristiana Cerchiari, consultora cega que acompanhou o processo, foi que esse desequilíbrio pudesse ser sentido também pelo som. Assim, Bruno Garcia, que fez a criação em sonorização e iluminação, propôs que o som chegasse de jeitos diferentes, alternando as caixas. O consultor surdo Bruno Ramos sugeriu que a bruxa-palhaça e seu “peteco” integrassem movimentos corporais que acompanhariam os sons do espetáculo. Assim esse som também poderia ser visto. O processo de criação-atualização do espetáculo foi muito rico e transformou toda a equipe. 

Discorra um pouco sobre qual é a sua relação pessoal e artística com a cultura indígena e também sobre o que são os “fazedores de riso” indígenas.
Sou muito atrapalhada desde criança. Quando comecei a estudar palhaçaria, eu piorava ou melhorava (depende do ponto de vista). Então soube da existência dos Heyokah, “palhaços sagrados” de um povo indígena norte-americano. O Heyokah tinha a função de fazer as coisas ao contrário, para provocar o riso e revelar que não existe um único jeito de fazer as coisas. Eles faziam trapalhadas no cotidiano e isso tinha um sentido importante para seu povo. Ops, me identifiquei! É que meu povo ainda era bastante colonizado e não entendia o quanto minhas trapalhadas eram sagradas! Então assisti ao documentário “Hotxuá”, dirigido por Letícia Sabatella e Gringo Cardia, que fala sobre os “palhaços sagrados” do Povo Krahô. Senti muita vontade de conhecê-los e em 2015 visitei a aldeia Krahô Manuel Alves Pequeno, conheci o Hotxua Ismael Ahpract e ganhei uma família e um nome Krahô. Desde então sigo me encontrando com diversos “fazedores de riso” indígenas. Já encontrei também os Trakinos e Trakinas do Povo Kariri Xocó e os Tongos e Tongas do Povo Guarani Mbya. Hoje sou palhaça-cacica do Povo Parrir, um projeto que coordeno e que promove o encontro desses fazedores de riso tanto nas aldeias como em apresentações na cidade. Para muitos povos indígenas, esses “seres atrapalhados” ensinam as pessoas a lidar com as diversidades, a compreender singularidades. Suas traquinagens e trapalhadas ensinam, curam e fortalecem as pessoas. Quando a gente ri, de algum jeito a gente amolece certezas. Quando a gente vê uma mesma coisa sendo feita de um jeito diferente, a gente vê que são muitos os jeitos de viver e existir no planeta e que toda essa pluralidade enfeita a vida. A colonização traz a ideia de uma verdade única e isso violenta muitas singularidades. 

Cena do solo S.O.S. Quase Tudo (De Outro Jeito!). Foto Isabela Jàcomo

Fale da sua visão da palhaça como conectora de diversidades.
Sou bastante palhaça na vida. Tenho o dom de entender de outro jeito. Uma vez fui fazer um bolo e estava escrito “uma xícara de chá de cacau”. Aí busquei no google como fazia chá de cacau. Esse meu “erro” mostra que não existe um jeito único de compreender essa frase. Se você riu é porque você também viu duas coisas. Você viu uma xícara de chá – de cacau e também viu chá de cacau. Minha trapalhada te mostrou um outro jeito de ver. Isso que me acontece o tempo todo também acontece em cenas de palhaçaria nos circos e nos teatros. Fui compreendendo o quanto seria importante escancarar a palhaça na vida. Primeiro a palhaça me curou e me fez afirmar essa minha versão atrapalhada. Depois a palhaça me mostrou que afirmando os meus descabimentos, eu afirmava também descabimentos alheios e isso também era um jeito de curar pessoas. Quando eu afirmo a minha diferença eu afirmo a sua também. A gente se conecta nesse lugar. Sua trapalhada não é igual a minha, mas você também se atrapalha. Sinto que a conexão, o amor, nasce daí. Amar o outro pela sua versão mais singular. Aquilo que só você tem é o que me faz amar você. Sinto que o planeta está precisando de amor e de palhaças. 

Como aparece no espetáculo a graça e o humor da palhaçaria, ou seja, como brincar com o tema sério das diferenças?
A gente vai brincar com as diferenças brincando com o que nos é comum. A palhaça coloca suas vulnerabilidades em cena e se depara com questões humanas que de algum jeito todo mundo vive. Amar, desamar e amar de novo. Atravessar momentos difíceis. Tentar controlar o que é incontrolável… de algum jeito todas as pessoas sabem o que é isso. Em S.O.S. Quase Tudo (de outro jeito!), a bruxa-palhaça recebe os mais diversos pedidos de ajuda. Por meio de rituais palhacísticos (que talvez ela utilize pra ela mesma…), ela vai solucionando os problemas. Mas ninguém está muito bem, então o problema parece ser mais complexo…será que a palhaça vai conseguir resolver sozinha? Uma brincadeira que a gente propõe no espetáculo é que algumas coisas só serão percebidas pelas pessoas com deficiência visual e surdas. Os intérpretes de libras terão uma cumplicidade especial com o público surdo e podem contar coisas que as pessoas que não conhecem Libras não entenderão. A mesma cumplicidade vai acontecer com a audiodescritora e as pessoas com deficiência visual. Ela pode fazer comentários específicos com esse público e só eles vão escutar. Como se agora a gente desequilibrasse um pouquinho para o outro lado. Os “enxergantes” e ouvintes sempre foram privilegiados – está tudo bem não entender as coisas de vez em quando!

Relate algo sobre as reações das mais diversas plateias por onde você já passou com esse espetáculo.
O espetáculo estreou no Equador em 2016 e foi uma experiência forte me apresentar falando em outra língua, principalmente porque muitas brincadeiras do texto não funcionariam na tradução. Por exemplo, uma das medicinas da bruxa-palhaça é o “Pó de Sim” e esse jogo com as palavras só funcionava no português. Então eu dizia que aquela era una medicina muy conocida en Brasil, el puede. Tínhamos “el puede si” e “el puede no”. E exatamente por eu estar tão vulnerável, falando um “espanhol diferenciado” o espetáculo funcionava muito. A palhaça ficava ainda mais palhaça e as pessoas amavam porque eu estava ali de verdade.  Quando me apresentei em Quito a altitude me deixava muito cansada. Então integrei no cenário uma caneca escrita “té de coca”. E em alguns momentos eu bebia água e descansava. As pessoas riam muito. Era piada e verdade ao mesmo tempo. Aqui no Brasil, em uma apresentação, uma criança me interrompeu e subiu no palco em uma cena em que a bruxa-palhaça “fica malvada”. O garotinho levantou o braço, fez uma sombra na parede e me disse “as pessoas têm suas sombras e é impossível fugir delas”. Tive que modificar toda a cena diante de tamanho ensinamento. Foi uma apresentação inesquecível. 

Serviço

S.O.S. Quase Tudo (de Outro Jeito!)

Teatro Paulo Eiró. Avenida Adolfo Pinheiro, 765
Dias 13 e 14 de setembro de 2025, sábado e domingo, 16h. Grátis

Teatro Alfredo Mesquita. Avenida Santos Dumont, 1770
Dias 20 e 21 de setembro de 2025, sábado e domingo, 16h. Grátis

[acf_release]
[acf_link_para_comprar]

Ficha Técnica

[acf_ficha_tecnica]

Serviço

[acf_servico]