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Artigo: “A Grande Magia” é um espetáculo absolutamente significativo e interessante

Sinopse

Peça escolhida para comemorar os 25 anos da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, em cartaz no Sesc 14 Bis, traz excelentes achados e criações

Por Alexandre Mate* (publicado em 10 de setembro de 2025)

“Somos hoje um misto de raízes fundas e asas abertas”
Marcelo Lazzaratto, no programa do espetáculo, com relação à Cia. Elevador de Teatro Panorâmico

Eduardo De Fillipo, nascido em 1900, se vivesse nos dias atuais, poderia, com muita tranquilidade, ser inserido na categoria de multiartista, em razão de ele ter se dedicado à atuação, à direção, à criação de roteiros, à dramaturgia e à reflexão, por meio de participação em espaços nos quais a linguagem teatral era debatida. Segundo o que pode ser lido acerca de sua vida e obra, De Fillipo foi um artista absolutamente ligado às suas origens sócio-culturais, cujas raízes aterravam-se a – belíssima e surpreendente – Nápoles. Do conjunto de obras criadas pelo multiartista italiano, quase todas, em tese, a se pautarem em estruturas arquetípicas dos modelos clássicos – de modo assemelhado àquelas de seu contemporâneo e espécie de mestre Luigi Pirandello, nascido em 1867 – compreendem a justaposição, àquela mais flagrantemente vista/ percebida, de camadas de potente teatralidade centrífuga.

Em tese, uma comédia, como seria o caso de A Grande Magia, contém e compreende um processo que colige gêneros e o uso de expedientes estilísticos diferenciados; portanto, a obra clássica, que é proclamada como pura, não pode ser tida como modelo de conduta da obra aqui tomada como objeto, na medida em que ela se caracteriza como um delicioso quebra-cabeças urdido em intrigante inventividade, cujas peças não têm a mesma textura, coloração, materialidade orgânica. Aquilo que se pode nomear como cultura italiana, cuja formação, na condição de estado nacional ocorreu, na década de 1920, sobretudo pelo fascismo. teve de ser, permanentemente, forjada e reconfigurada por intermédio de procedimentos de resistência quanto às suas mais representativas tradições.

Estratagemas táticos, para se conseguir existir, também a partir de singularidades ancestrais, tendem a coligir as coisas de que se é feito em processos cujos aterramento às convivialidades podem ser buscadas em baús a transbordar manifestações, às vezes encapsuladas, e em fundos falsos, de dificílimo acesso. Logo, gente sensível e comprometida para além do fácil (a amar e a necessitar do “longe e da miragem”, como escreveu José Régio em Cântico Negro), que não quer e nem precisa copiar, toma um modelo paradigmático para revirá-lo, reconfigurá-lo… Se se toma, por exemplo, a trajetória de Calogero, impossível se pensar a obra “apenas” como uma comédia. Evidentemente, há traços de alguma comicidade, mas, de modo assemelhado àquele do exemplar Segismundo (de A Vida é Sonho, de Calderon de La Barca), a comicidade se esboroa, misturadamente, na mais patética tragédia. Além disso, e montar a obra de De Fillipo, na atualidade brasileira, cuja “vida de gado, de um povo marcado – pelo ódio – e feliz” é fundamental. Obra de explícita manipulação de um sujeito, inicialmente de comportamento mais defensivo, racional e cético, que perde absolutamente tudo, mas que por meio de uma macarronada (a comida se caracteriza no motor das formas representacionais populares, com ênfase à farsa), acorda, quem sabe, para redimensionar seu viver. A partir de tal apreensão, qual seria a “macarronada” para acordar tanta gente boa, manipulada para o mal/ mau próximas de nós?

Outra cena de peça A Grande Magia, de Eduardo De Filippo, montada pela Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Foto João Caldas Fº

Em quais espelhos, evocando Retrato, de Cecília Meireles, estão aprisionadas as faces de tanta gente convertida? Deslindar tal “malévola para muito além de mera charada” não é trabalho para grandes magias em contexto repleto de Otto Marvuglia, renomeados malafaias… A obra híbrida manifesta, contundentemente, os processos manipulatórios de apreensões, de percepções, do uso da razão, de trajetórias de vida… Tudo se opaciza pela entrega de si a fés, criadas estrategicamente para a locupletação pessoal.

A Grande Magia, escrita em 1948, pode-se afirmar, dentre outras, teve como inspiração outra criação de DeFillipo, escrita em 1929, e batizada como Sik-Sik, o Fazedor de Magia, cujo parente na obra em destaque é Otto Marvuglia. Obra de especularização que manifesta a perda da crença em si, da memória histórico-social que constitui qualquer ser humano. Ouvir o texto, cuja tradução não aparece no programa é de uma delícia intensa. Em uma fina, entretanto, bem trançada linha, a Europa vivia o pós-guerra, e, de tal experiência de derrota, ninguém consegue sair completamente inteiro.

Independentemente do gênero, a obra em destaque divide-se, classicamente, em três atos, adotando o caminho indicado: apresentação das personagens e dos assuntos fundamentais, no primeiro ato; desenvolvimento das ações e intrigas, tendo em vista tratar-se de uma “comédia”, no segundo ato; e. conclusão, no último e terceiro ato. Em tese, e de modo absolutamente sucinto, as dívidas e vida difícil de Marvuglia e Zaira concilia-se aos interesses e paixão de Marta (casada com Calogero) e Mariano. Pela entrada de dinheiro na questão, o mágico prerpetra uma interessantíssima jogada por meio da qual Calogero é enganado. Em tal universo, de mentira e ilusão, passará a imperar o simulacro e a capacidade em manter uma farsa, na condição de “verdade”. Por meio da inequívoca compreensão do texto por Marcelo Lazzaratto, o tratamento estético da obra é absolutamente esperpêntico, de modo bastante assemelhada ao neoconvencionalismo estético criado por Ramon del Valle-Inclán. As personagens, ainda que a primeira cena ocorra às portas do Hotel ElevatoreParadiso, não são clássicas: elas se manifestam, desenhadamente (de modo coreografado, com momentos geniais), por intermédio de rebatimentos de suas imagens em espelhos côncavos e convexos. Portanto, o que se vê, e não apenas pelo texto, são camadas de comportamento grotesco (em seus mais diferenciados sentidos e possibilidades interpretativas) em situações de conivência social a transforma os comportamentos conviviais, repletos de todo tipo de conchavos.

O espetáculo, dirigido por Marcelo Lazzaratto, diretor de tantas e significativas montagens, foi escolhido para comemorar os 25 anos da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Trata-se de um espetáculo absolutamente significativo e interessante (além do texto delicioso), os destaques podem ser atribuídos: à concepção do espetáculo e a sincronização das distintas linguagens que confluem para criação da obra; destaque aos desenhos de cena, sobretudo à composição coreográfica das personagens; pelo conjunto de atores e atrizes, com destaque às atuações de Chico Carvalho e Pedro Haddad, que estão maravilhosos, irretocáveis!; pela trilha sonora, insinuadamente napolitana e em harmônica pulsação ao espírito do texto e desenhos de cena; pela criação cenográfica, repleta de poesia e expedientes “simples”, absolutamente estetizados à obra híbrida, de matriz popular e prenhes de teatralidade; pela excelência do trabalho de criação expressivo-corporal…

Cena da peça A Grande Magia, da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico. Foto João Caldas Fº

Enfim, trata-se de uma obra com excelentes achados e criações. Há cenas lindas, como, por exemplo, a das lavadeiras, com os varais e o canto da ária de O Mio Babbino Caro, de Giacomo Puccini; a transição do segundo para o terceiro ato; a fuga do palco do casal Marta e Mariano, no barco em direção a Veneza; muitas das cenas, assemelhadas àquelas de Miguel de Cervantes em O Retábulo das Maravilhas, decorrentes da caixa na qual estaria a esposa de Calogero. Do mesmo modo como no texto de Cervantes, gente ímpia não poderia ver o que estaria na tela de lá à esposa aprisionada de cá.

A grande, a maior das magias do viver, possivelmente, pode encontrar algum eco e conforto na produção artística. The Impossible Dream, de Mitch Leigh e Joseph Darion, acena possibilidades, feito aquelas que impulsionou Quixote a ir à busca da concretização de sonhos impossíveis… Mas retomando a caixinha “aprisionante do nada”, a metaforizar o surpreendente texto de De Fillipo e os inventivos caminhos de criação do espetáculo pela Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, muito além de supostamente se caracterizar em entretenimento (que convenhamos, nesses tempos em que estamos a viver, não seria pouca coisa), promove uma revisitação de juízos ideologicamente fechados em si. A obra, na condição de forma estética (a coligir conteúdo, estrutura arquetípica e ponto de vista explicitado), promove uma tentativa de materialização do inexistente alimentada por crença (“que esteriliza os abraços”) e constrói uma cadeia de medos em estadonadificante (quase insurgência da metafísica de Heidegger). Estamos diante de uma bela e inquieta obra, que demove afirmações certeiras e nos coloca (caso se permita) em uma zona de fronteira, cuja senha pressupõe o antítodo da contramagia. De fato, a bela obra me inquietou e me fez viajar. Para “terminar”, tenho de apresentar meus agradecimentos ao coletivo criador, e evocar, partilhadamente, a maravilha de Guardar do poeta Antônio Cícero, para quem:

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guardar o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Fui assistir ao espetáculo em uma sessão vesperal, no Teatro Raul Cortez (da unidade do Sesc 14 Bis), cuja totalidade do público era formada por estudantes-adolescentes de uma escola técnica, assim, além da atenção às duas horas de espetáculo, os aplausos foram absolutamente calorosos e intensos.

*Alexandre Mate é mestre em Teatro pela ECA-USP e doutor em História Social pela FFLCH-USP.

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