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“Carvoeirinhos” mostra a rotina de crianças que trabalham

Sinopse

Peça em cartaz no Teatro Alfredo Mesquita, com direção de Cássio Brasil, explora o tema do trabalho infantil e tem o mérito de escancarar uma realidade cruel e diversa para o público mirim de uma cidade grande como São Paulo

Por Dib Carneiro Neto (publicada em 15 de agosto de 2025)

Um dos prazeres incomensuráveis de se acompanhar há anos o circuito paulistano de teatro para as infâncias é constatar o quanto há de diversidade e ousadia nas propostas dos encenadores que decidem direcionar suas vocações para essa arte tão segmentada e especifica. Claro, tem muito diretor que ainda adota as formas mais clássicas e tradicionais de encarar o público mirim, e isso é válido também. Mas críticos tendem a gostar mais de quem avança e até transgride. 

Cássio Brasil, por exemplo, diretor, cenógrafo e figurinista do infantil Carvoeirinhos, em cartaz no Teatro Alfredo Mesquita, em Santana, procura mirar suas escolhas na direção de temas que normalmente não se consideram “assunto de criança”. Em seu trabalho anterior, de estreia como diretor para crianças, O Sapateiro Ruço, ele abordou a desigualdade social, os privilégios dos ricos e o mundo do trabalho. Neste Carvoeirinhos, baseado em livro de Roger Mello, Cássio prossegue na mesma linha temática para deixar bem claro que criança não trabalha, criança brinca.

“Zelei o mais que eu pude pelo texto do Roger, que é incrível, bem poético e muito imagético”, diz Cássio Brasil. “O Roger deixa pistas teatrais no texto dele e espero ter conseguido transportar tudo para o palco. A ideia é que, por meio do teatro, a criança chegue à literatura – e vice-versa. A geração de hoje está cada vez mais distante da leitura, o que é muito grave.” O enredo fala de duas crianças que trabalham em uma carvoaria, observadas de perto pelos olhos de um marimbondo.  A rotina diária e precoce de ambas pela sobrevivência vai tecendo a narrativa, realmente inusitada em palcos de censura livre.

Cena do infantil Carvoeirinhos. Foto Jack Oliveira

O diretor foi uma criança que trabalhava. Vejam seu relato: “Minha infância foi pobre, com muita dificuldade financeira, meu pai morreu cedo, então fui uma criança que trabalhava. Trabalhei na roça, depois em casa, cuidava de primos, limpava a casa, cozinhava, lavava minha roupa e até costurava. Vivi em um mundo muito diferente do de hoje, porque era interior. Eu também brincava, claro, principalmente de ser um ‘construtor’, e criava fazendas, casas, tudo com objetos corriqueiros que eu tinha à mão, numa excitação e felicidade imensas. Conheci muito cedo essa felicidade da criação. Considerava tudo isso que eu fazia, essas construções, essas fazendinhas, como a minha obra. Só que, no dia seguinte, eu via aquele ‘brinquedo’ construído por mim com olhos mais realistas, menos deslumbrados, e percebia as falhas, o que ficou faltando, o que já desmoronava… Desde cedo, aprendi a lidar com isso, com essa frustração da realidade, de ver que aquilo não era tão maravilhoso quanto estava imaginando. Mas isso não me inibia nem me impedia de fazer de novo, tudo outra vez.”  

Nas peças de Cássio Brasil, cenografia e figurino, assinados por ele, são atrações diferenciadas, sempre muito bem pensadas e engenhosas, além de criativas. Aqui, para Carvoeirinhos, ele cuidou de harmonizar o preto do carvão com texturas metálicas e espelhadas. Ele explica: “O carvão é usado muito no desenho e, como é uma obra inspirada num livro de um autor que também é ilustrador e que usa muito a técnica do carvão em seus desenhos, resolvi levar isso à cena. O preto no palco permite ambientes infinitos, isolados. E o metálico está no figurino do marimbondo, em um tecido sanjam, com cetim e veludo, e também em superfícies espelhadas, como nas plataformas onde fica ‘pendurado’ o marimbondo. O fosco do carvão e o metálico reflexivo de cenário e figurino convivem bem. Ficou até um pouco formalista demais, mas foi o que consegui fazer. Estou até pensando em clarear um pouco. Não é por ser infantil que a peça tem de ser simplória. Carvoeirinhos, por exemplo, é um livro que ganhou o Prêmio Hans Christian Andersen de ilustração, o principal prêmio mundial de literatura infanto-juvenil, o Nobel desse gênero. Então, eu não poderia fazer concessões, não poderia deixar por menos.”

Por falar em concessões, Cássio Brasil nos dá um forte depoimento sobre algo que se pensava ter terminado no teatro para crianças há muito tempo, mas pelo jeito prossegue. Olhem só sobre o que ele desabafa: “A gente ainda vive um problema sério no teatro infantil. Estamos sempre tendo de aceitar as limitações impostas pela peça adulta em cartaz no mesmo teatro no horário noturno. Hora de usar o palco, vara, espaço na coxia, espaço para guardar cenário… A gente é encurralado e empurrado a fazer uma coisa simples e facilmente desmontável, para não atrapalhar o espetáculo da noite. E eu não consigo me encaixar nessas limitações. Eu explodo sempre, saio fora do esperado, compro essa briga com as produções. As estreias, por exemplo, acabam saindo ruins tecnicamente, porque a gente não tem tempo de uso do palco para testar, testar e testar. Eu sempre tento fugir do que se espera de uma peça infantil. Sempre penso na criança que existe dentro de mim, por assim dizer. Faço como se fosse peça adulta, não vejo diferença. Crianças são mais sensíveis, exigentes e sofisticadas do que os adultos. Os adultos ficam mais idiotizados, passam a gostar do que os outros gostam. Nosso gosto fica mais condicionado. A criança, não. A criança é mais livre, não tem crítica, o que faz dela um público sofisticado do ponto de vista visual. Tento atender a essa criança, não gosto de nada óbvio. Prefiro uma coisa que não se entenda facilmente, em vez de ser algo muito explícito.  A gente cresce e fica escrava do que o mundo impõe. Acredito na inteligência da criança. Se as crianças conseguissem crescer com essa sensibilidade toda, esse raciocínio tão original, sem serem embotadas pelas estruturas sociais, o mundo seria muito mais divertido, muito mais feliz.”

Serviço

Carvoeirinhos

Teatro Alfredo Mesquita. Av. Santos Dumont, 1.770

Sábados e domingos, 16 h. R$ 20

Até 31 de agosto (estreou em 9 de agosto)

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Ficha Técnica

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Serviço

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