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“Bonitinha, mas Ordinária”, de Nelson Rodrigues, é revigorada por questões raciais e de poder

Sinopse

A montagem, dirigida por Bruce Gomlevsky, tem núcleo de atrizes pretas e critica a elite do atraso através de família milionária

Por Dirceu Alves Jr. (publicada em 13 de agosto de 2025)

A obra do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) atinge a década de 2020 apoiada em suas vocações clássicas e polêmicas. O autor é vítima do cancelamento desde muito antes de a expressão popularizada pela internet se tornar sinônimo de veredito. Condenada pela esquerda e pela direita, por conservadores e revolucionários, por intelectuais e pouco letrados, a dramaturgia rodriguiana, por isso, permanece aberta às diferentes revisões.

Em 2023, o diretor Sergio Módena encenou A Falecida, tragédia carioca de 1953, em diálogo com o fanatismo religioso e a visão machista da mulher.  É no mesmo palco, o do Teatro do Sesc Santo Amaro, que, exatos dois anos depois, estreia outro grande exemplar da dimensão crítica de Nelson Rodrigues. 

Parte do elenco da peça Bonitinha, mas Ordinária.. Foto Rômulo Guimarães

Sob a direção de Bruce Gomlevsky, Bonitinha, mas Ordinária, peça de 1962, ganha a cena nesta sexta, 15, revigorada pela representatividade racial e problemáticas de poder tão discutidas na atualidade. Uma outra leitura do mesmo texto foi apresentada no primeiro semestre pelo diretor Nelson Baskerville com a proposta de uma distopia sobre elite e da extrema direita brasileira.

Pela primeira vez, na encenação de Gomlevsky, a família de Ritinha (interpreta por Sol Miranda) é representada por atrizes pretas. A jovem professora, na verdade, se prostitui para sustentar a mãe (papel de Marília Coelho) e garantir um futuro diferente para as três irmãs (defendidas por Heslaine Vieira, Ágatha Marinho e Aline Dias).  “Quando reli a peça, essa questão racial me incomodou porque a Ritinha é uma heroína trágica, e o realismo só seria acentuado se ela fosse preta”, comenta o encenador. “Revi duas versões cinematográficas, com Ritinha feita pela Odete Lara em 1963 e pela Vera Fischer em 1981, e, nestes casos, as famílias da personagem, mesmo vivendo no subúrbio, pareciam símbolos da aristocracia do Leblon.” 

Ritinha é a vizinha e namorada de Edgar (papel de Paulo Verlings), funcionário humilde que recebe uma proposta do chefe milionário, Werneck (o ator Jitman Vibranovski), capaz de desafiar os seus limites éticos. O rapaz precisa se casar, assumidamente por interesse financeiro, com Maria Cecília (a atriz Lorena Comparato), a filha do patrão, que, vítima de um estupro, não pode ficar marcada pela desonra. Quem intermedia o acordo é Peixoto (o ator Cláudio Gabriel), outro genro de Werneck e uma espécie de Mefisto rodriguiano. Edgar reluta em assumir o compromisso e o seu conflito diante da tentação de um dinheiro supostamente fácil conduz a peça.

“O Werneck é o típico representante desta elite do atraso que há 500 anos ocupa o poder no Brasil e se encarrega de oprimir todos que estão ao seu redor”, diz o diretor. “Além da identidade racial, esta foi outra questão que me atraiu porque parece que, desde as Capitânias Hereditárias, somos comandados pelas mesmas famílias que dominam determinadas regiões do país.”

Atores que encenam a peça Bonitinha, mas Ordinária.. Foto Rômulo Guimarães

Em busca de evidências da atualidade do original rodriguiano, Gomlevsky até pensou em editar o texto para apagar termos ou situação que soariam datados ou até preconceituosos. A melhor solução, segundo ele, foi manter a trama concentrada entre o final dos anos de 1950 e começo dos anos de 1960 e não trazer para a contemporaneidade, como seria a ideia inicial. “Se eu cortasse o texto do Nelson, estaria me comportando como um censor de sua obra”, justifica.

O enfoque temporal ainda garantiu um salto de teatralidade para explorar os figurinos e o cancioneiro da época. A trilha sonora se apresenta como um envolvente suporte da encenação, com expoentes do samba-canção, da bossa nova e do emergente rock’n’roll. “Eu achei bom mostrar que algumas coisas realmente ficaram datadas porque isto sublinha o quanto o Brasil permanece estacionado em seus preconceitos e princípios sociais e morais”, declara.    

Gomlevsky, de 50 anos, é íntimo do universo de Nelson Rodrigues. Ele estreou profissionalmente como ator na peça A Mulher Sem Pecado, obra seminal do dramaturgo, publicada em 1941, em versão dirigida por Cláudio Torres Gonzaga e produção de Solange Badim em 1992. Como encenador, ele comandou O Anti-Nelson Rodrigues (2015) e Os Sete Gatinhos (2017), ambas com o ator Tonico Pereira encabeçando o elenco, e planeja realizar uma montagem expressionista de Álbum de Família, talvez a mais polêmicas das peças de Nelson, engavetada pela censura durante duas décadas.

“O Nelson incomoda tanta gente até hoje porque é amoral, escancara de maneira muito contundente o inconsciente coletivo”, define. “Em Bonitinha mesmo, eu me surpreendo com momentos em que o público ri de várias cenas e, logo depois, todos se sentem profundamente incomodados com a trama.” 

Bonitinha, mas Ordinária estreou no Rio de Janeiro em agosto do ano passado, abriu a programação da Fita (Festa Internacional do Teatro de Angra dos Reis), em setembro, e circulou por Curitiba, Fortaleza e Brasília até dezembro. O projeto parecia finalizado quando veio a possibilidade desta temporada paulistana. Gomlevsky afirma que a montagem volta a cartaz com um novo frescor, inclusive por causa das várias alterações no elenco, que reúne dezessete atores e ficou difícil compatibilizar as agendas da equipe inicial. 

Paulo Verlings, por exemplo, entra no lugar de Emílio Orciollo Neto, idealizador do projeto e intérprete original de Edgar. Jitman Vibranovski assume Werneck, que era feito por Ricardo Blat, e Alexandra Richter ganhou o papel de Dona Lígia, a mulher do magnata, vivida por Sylvia Bandeira, agora envolvida com a novela Dona de Mim. Maria Cecília continua interpretada por Lorena Comparato, mas poderá ser substituída por Carolina Pismel em algumas sessões, já que a titular roda em paralelo um filme. “É quase uma estreia mesmo porque o elenco está com uma energia renovada e vontade de falar o texto”, reconhece Gomlevsky.     

Serviço

Bonitinha, mas Ordinária

Sesc Santo Amaro. R. Amador Bueno, 505

Quarta, sexta e sábado, 20h. Quinta, 16h. Domingo, 18h. R$ 70. Não haverá sessões na quarta (20) e quinta (21).

Até 7 de setembro (estreia 15 de agosto)

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Ficha Técnica

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Serviço

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