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Infantil mostra a cultura indígena como ela é

Sinopse

Estreia no Sesc Pinheiros mais um incrível espetáculo que foge do estereótipo caricato dos indígenas, difundido nas escolas por décadas, e mostra uma visão muito peculiar de respeito à natureza, “Dia-u’ti’karo: A Sucuri e o Segredo dos Pássaros”

Por Dib Carneiro Neto (publicada em 31 de julho de 2025)

Que beleza constatar, cada vez mais, que artistas indígenas ganham voz no teatro, montam peças, contam suas histórias. Essa cultura precisa ser compreendida para muito além dos estereótipos rasos que ensinam nas escolas para as crianças brancas de famílias hegemônicas. Cansamos de ver peças com personagens indígenas, feitas sem aprofundamento, sem conhecimento, sem lugar de fala, como se diz hoje em dia. Com dramaturgia e direção de Anderson Kary Báya, estreia neste fim de semana em São Paulo, no Sesc Pinheiros, mais uma dessas maravilhas esclarecedoras e plenas de verdade.

O nome da peça é Dia-u’ti’karo: A Sucuri e o Segredo dos Pássaros e ela carrega a missão de transmitir a mensagem da importância de ouvir a natureza e estar em harmonia com ela. Ah, você acha um assunto batido e já muito explorado no teatro para crianças? Mas agora, neste espetáculo, você vai ver a específica visão sobre isso dos indígenas das etnias Tukano e Tariano. Na entrevista que segue abaixo, você vai ler, por exemplo, que “Pedra e planta são gente como a gente” ou ‘Não usamos cocar por respeito à natureza” ou, ainda, “Meu pai me preparou para ser bayá (artista), porque tem gente que nasce mesmo pra isso”. Com a palavra, Anderson Kary Báya, que faz questão de deixar claro que usa muito o humor para deixar tudo mais leve na hora de mostrar uma cultura tão diferente para as crianças. 

Cena do infantil Dia-u’ti’karo: a sucuri e o segredo dos pássaros. Foto Rafael Avancini

Somos eternos aprendizes dos mistérios que existem na natureza. Mas, na sua opinião, o que é mais urgente que as crianças aprendam sobre a natureza?
Na minha opinião, o que as crianças têm de aprender de mais urgente é respeitar a natureza. Respeitar a natureza como ser vivo, como se fosse a sua própria mãe, como se fosse o seu próprio tio. E não olhar para a natureza ou para a árvore como se fosse só uma árvore, só uma pedra ou como se fosse só um galho, mas ver que é uma parte de alguém. Então, quando começarem a observar a natureza e sentirem essa presença interligada, geralmente as crianças têm um pouco de mediunidade, conseguem ver o que um adulto já não consegue ver. Então, quando olhar para a pedra, sabendo que aquele já foi um ser vivo, andante um dia, quando olhar para a árvore, saber que a árvore tem muito conhecimento, que é nos núcleos que há bastante história. E olhar para a floresta e olhar para a montanha e saber que aquela é a casa do curupira. Pode ser a casa do curupira, pode ser a casa da cobra grande. E que, assim, olhando dessa forma, eles vão começar a respeitar. Porque se a gente olhar as paisagens ou só como um objeto, ou só como uma paisagem, ou só como uma terra, como se fosse um local que só nos dá sombra e que só deixa a gente pisar nela, aí não vai haver respeito. Mas, quando começarem a perceber que aquele espaço é um ser vivo e que a gente pisa no ser vivo, aí vão começar a respeitar e haverá uma grande harmonia. Uma grande harmonia que vai ser muito duradoura. Então, com a gente a respeitando, ela também vai nos respeitar. Não vai diminuir tanto essa questão da devastação, essa questão dos desastres naturais, como teve aqui no Brasil mesmo. Mas vai acabar um pouco com essas doenças, por exemplo, a virose, muito causada por esses seres, quando caem as flores, quando vem o verão. Então, na minha opinião, a principal palavra é o respeito e olhar para a natureza como um ser vivo, como gente como a gente.

Conte um pouco sobre o seu grupo de teatro, o Coletivo Kari. Existe desde quando? Tem sede? Onde? Quantas peças já fez? Quantos integrantes?
O Coletivo Kari é fruto do Grupo de Artes Dyroá Baya, fundado em 2002, formado por Severiano Kedasery (Tariano) e Ermelinda Yepário (Tukano), que são dois anciões, dois conhecedores das suas culturas. Severiano era xamã, era bayá. Então, o Dyroá significava o filho do trovão, pois dentro da etnia tariana existem os subgrupos. E baiá, que é um líder de cantos, de danças, um conhecedor das artes dentro das comunidades indígenas, lá do Alto Rio Negro, que é só lá que ele é conhecido assim, só lá que tem essa função. E depois, com um tempo trabalhando, conhecendo outros artistas locais de Manaus, foram convidados para participar de espetáculos, até o ponto de chegar a criar os nossos próprios trabalhos, por perceber que algumas outras pessoas não contavam da forma que era correta, na nossa visão e através das nossas vivências. Então, o grupo terminou, passando a ter o nome de Coletivo Kari, muito por questões espirituais e por questões culturais também. Foi mantido depois do falecimento de Severiano, para honrar essa trajetória dele como ator, como xamã e como bayá também. Trabalha muito com essas duas etnias, porque Severiano era tariano e Hermelina é tukana. No momento, ele tem sede aqui em Suzano, em São Paulo, numa área rural, tem uma maloca onde costumamos fazer os ensaios, onde eu faço a meditação para criar alguma história, para criar um novo espetáculo, cenário, tudo é através de reflexão, através desses comandos, dessas visões que esses ancestrais conversam pelos sonhos ou usando os fumos. Então, a sede, por enquanto, é na maloca, mas a ideia é um dia ter uma sede na capital também para ficar mais perto das pessoas, para quem tem curiosidade de visitar, para ter um espaço que tem artesanato, um espaço de cura. Então, é muito difícil as pessoas virem para cá, porque é um pouquinho longe aqui em Suzano. Atualmente, o grupo é composto por pessoas indígenas, que é um grupo que faz parte mesmo, mas também sempre estamos convidando artistas não indígenas para estarem compondo e para contar melhor essas histórias. Por exemplo, nós somos indígenas, mas a gente pedra, ou as mulheres, gente peixe, ou gente cutia, eles não tinham a mesma fisionomia que a nossa. Então, para melhor ilustrar, para melhor mostrar visualmente, a gente convida artistas não indígenas. O grupo é composto por sete indígenas, três homens e quatro mulheres. Então, a gente cuida mais dessa parte, de estar criando, desde a concepção e desde ver no físico mesmo. Aí, pessoas não indígenas, a gente sempre costuma convidar de três a quatro, três a cinco, depende muito do trabalho, para estar compondo dessa visão também. Trazer a visão deles, para que a gente possa, a partir das dúvidas dessas pessoas, para o público estar mais preparado, para estar ouvindo o que nós temos para mostrar. Até o momento, o coletivo tem oito espetáculos, três adultos e o resto é mais infantil.

Quais as principais bases e fundamentos que fazem parte das tradições indígenas das etnias Tukano e Tariano? O que o público vai conhecer dessas etnias vendo o espetáculo?
Eu percebo que o ponto crucial é a partilha. Uma coisa que é muito seguida são as festas. Mas o mais importante para mim como base são as histórias, porque é por meio das histórias que um comum consegue extrair, fazer o diagnóstico, fazer a cura. Com as histórias é que a gente aprende o porquê de fazer as casas, as festas. Por exemplo, a festa da Bukuri, que é uma festa de partilha, ou a festa do Iurupari, que é sagrada. Histórias que vamos ouvindo, que é esse momento que a gente tinha quando morava lá em Uarete, que é o lugar de origem, que a gente mantinha essa cultura viva e depois botava em prática. Quando criança aprende através das histórias, depois na fase adulta vai colocando em prática já. Então, partilhar histórias, eu acredito, na minha vivência, é a base para manter a cultura viva e também para estar passando para as próximas gerações, principalmente para nós que temos a base da tradição da oralidade, não da escrita, mesmo que tenha os grafismos assim. E o público vai conhecer muito isso, por exemplo, a base que eu percebo, que outros indígenas usam muito o cocar, e o nosso grupo busca não usar, e também muito por questões espirituais, muito por respeito à natureza mesmo. Então, o que vai conhecer é a flauta sagrada, que é a do Iurupari, então as falas, porque muita gente pensa que os indígenas só falam tupi, e a gente fala tucano, que é um tronco linguístico mesmo. O pessoal também às vezes confunde como dialeto, ou às vezes pergunta se é tupi, mas também para mostrar um pouco sobre essa outra linguagem, que não é muito mansa. É uma língua firme, é uma língua que às vezes até o pessoal pensa que estamos brigando, quando estamos conversando normal no dia a dia, mas é uma língua que é bem forte. Além disso, vão conhecer o canto, vão conhecer a presença dessa xamã que mostra essa conexão da pajé, que tem uma conexão com essa conversa com a própria deusa Iepá, criadora do povo tukano, porque dos tarianos é o grande trovão, que é o Enum. E, através disso, conhecer um pouco dessa diversidade cultural, através dessa força e através da língua, do canto, de como essa história foi construída na visão de um indígena, através de muita reflexão, o que realmente ele quer passar. Então, traz muito humor também para poder mostrar que nós somos engraçados também. Muitas pessoas, às vezes, não entendem, colocam como se o indígena não tivesse uma nuance de sentimentos.

Outra cena do infantil Dia-u’ti’karo: a sucuri e o segredo dos pássaros. Foto Rafael Avancini

Por que o teatro é uma arte importante para se aliar com a preservação das culturas indígenas?
Bom, a arte é muito importante para qualquer cultura, acredito eu que é uma parte muito importante, porque é através dela que a gente aprende bastante coisa. Eu, felizmente, fui escolhido para ser um Bayá, para ser um artista. É importante dizer que nem todo indígena é um artista, como em qualquer outra sociedade. Tem meus parentes que são muito bons em estar líderes, em estar na política. Tem outros que são especialistas em ser xamãs. E o meu pai me preparou para ser um Bayá, para ser um artista. Ele era o comum, mas sempre, quando podia, me ensinava a ser um Bayá, um artista. Então, eu uso essa ferramenta para poder colocar essas mensagens dos ancestrais, mas também fazer uma crítica. O teatro é uma forma muito boa, muito visual, através das falas, através do cenário, mostrar essa presença indígena, contar um pouco dessa verdade dentro da nossa visão, porque dentro do teatro eu posso levar canto, dança, as falas, um corpo indígena, tudo em um local só. E também para preservar, porque aí sim as crianças, ou outros indígenas vão aprendendo, assistindo uma peça ou vendo um trabalho do coletivo de uma forma geral, de uma forma divertida. Então, uma das coisas que eu gosto muito de colocar nos trabalhos é o humor, é o cômico, às vezes só um pouquinho de drama, porque acredito muito que a vida é muito corrida. Então, saio um pouco dessa parte tradicional para falar sobre um assunto sério e coloco uma quebra. Então, o teatro ajuda muito isso. Para preservar a cultura indígena do meu povo através das artes é um grande prazer, principalmente porque dá para brincar muito com esse sentimento, sair da realidade e para mostrar jogando uma verdade, dando um puxão de orelha, mas de uma forma bem humorada, de uma forma artística, com todos esses elementos que compõem luz, som, onde eu vou aprendendo também a usar essas ferramentas ao meu favor, porque não faz parte da minha tradição. Tudo o que eu fazia era à beira da fogueira, o meu pai era uma pessoa séria, a minha mãe também, porque são coisas sérias, mas que aí para o público em geral eu quero passar de uma forma bem branda, então o teatro me ajuda muito nessa questão.

Serviço

Dia-u’ti’karo: a sucuri e o segredo dos pássaros 

Sesc Pinheiros. R. Paes Leme, 195

Domingos, 15h e 17h. R$ 40 – Grátis para crianças até 12 anos

Até 31 de agosto (estreia 3 de agosto)

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Ficha Técnica

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Serviço

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