Clássico de Machado de Assis ganha versão musical que aborda questões de hoje como a fragilidade das relações humanas
Por Ubiratan Brasil
Em 2021, quando os efeitos da pandemia da covid ainda eram evidentes, os criadores Guilherme Gila e Davi Novaes buscavam novos projetos quando se depararam com a ausência de musicais brasileiros inspirados em grandes obras literárias. Iniciaram um meticuloso trabalho que resultou em Dom Casmurro, espetáculo inspirado na clássica obra de Machado de Assis, em cartaz no Teatro Estúdio, em São Paulo.
“Tanto eu quanto Davi temos um apreço gigante por literatura, sobretudo a do nosso país. Percebi que lá fora muitos dos musicais que amamos e são sucessos gigantes na Broadway partem da adaptação da literatura americana e mundial, mas no Brasil os musicais nacionais em sua maioria partem das biografias. Decidi então em adaptar nossos livros e autores para o teatro musical, e rapidamente apareceu Dom Casmurro”, conta Gila, que assina a direção musical, além da criação das letras e das músicas.
Fã inveterado da escrita, Davi aceitou o desafio de transformar o livro em espetáculo. Uma tarefa nada fácil. Publicado em 1899, o romance traz o envolvimento de três personagens em uma obra elogiada, entre várias qualidades, pela dúvida plantada na mente do leitor: teria Capitu traído seu marido, Bentinho, com o amigo dele, Escobar? E, desde então, leitores de diversas gerações se perguntam: o ciúme de Bentinho era mesmo justificado? Ezequiel era de fato filho de Escobar, fruto de uma aventura extraconjugal de Capitu?
“Tentei me ater ao livro o máximo possível, fonte de todas as outras adaptações que, querendo ou não, figuram na minha memória. A minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho, Capitu, me acompanhou enquanto imaginário, pois me marcou muito, mas não escrevi nenhuma cena diretamente influenciada por ela ou por qualquer outra adaptação que tenha encontrado pelo caminho. Tentei criar a minha própria, a partir das palavras do Bruxo do Cosme Velho“, explica Davi.
O projeto só vingou, no entanto, quando as produtoras A Casa Que Fala e Tomate Produções se uniram para viabilizar a peça. E também quando Zé Henrique de Paula aceitou dirigir o musical logo ao assistir à uma leitura cantada. “Gosto de apostar em projetos autorais brasileiros e esse realmente me tocou porque se trata de um romance que aborda questões atuais como a fragilidade das relações humanas e o papel da percepção individual na construção da realidade“, explica o encenador.
A adaptação conduz o espectador a uma espécie de julgamento, em que os personagens apresentam suas justificativas a fim de ajudar o público a formular sua decisão. Não há indicação clara se houve ou não adultério, detalhe também evitado por Machado em sua obra.
“Nessa adaptação, tomei a liberdade de evidenciar algo que já vem sendo discutido há décadas sobre nosso protagonista Dom Casmurro: sua inconfiabilidade. Na nossa versão, isso é assumido: Dom Casmurro prepara os atores de sua própria história para entrarem em cena, dá falas para que Capitu saiba o que dizer na história que ele conta sobre os dois. Esse é o fio principal que guia essa nossa visão do clássico machadiano. E, por fim, Guilherme Gila faz justiça e concede à Capitu a palavra final”, antecipa Davi.
Apesar de ser uma história que se passa no final do século 19 – e o figurino evidencia isso -, as músicas tanto trazem exemplos do mais puro cancioneiro brasileiro como também rock’n’roll. “As melodias surgiram como uma forma de engrandecer e reproduzir estas emoções que Machado de Assis evoca a cada parágrafo. Eu busquei usar referências da MPB tanto na forma de escrever as letras quanto em algumas melodias para envelopar esses estilos e manter a identidade brasileira da obra”, conta Gila.
Assim, no momento em que Bentinho se rebela contra a decisão da mãe de ser padre – fruto de uma promessa da matriarca -, o rock foi o ritmo escolhido para imprimir todos esses elementos de rebelião típicos da juventude.
O elenco é formado por Luci Salutes como Capitu, Rodrigo Mercadante no papel de Bentinho e Cleomácio Inácio fechando o trio como Escobar. Larissa Carneiro assume a forma de Prima Justina, Fábio Enriquez vive José Dias e Nábia Villela traz à vida Dona Glória. Por fim, Eduardo Leão interpreta Tio Cosme.
Serviço
Dom Casmurro
Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891
Segunda, terça e quarta, 20h. R$ 120
Até 27 de novembro (estreou 4 de novembro)