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“Diga que não me conhece”, livro de Flavio Cafiero, ganha adaptação delicada

Sinopse

Em tempos de relações rasas, ghosthing, pouco envolvimento e facilidades para o sexo, homem releva um retrato íntimo e comovente da solidão de uma grande cidade, onde ter tudo à mão poder ser o mesmo que não ter nada

Por Redação Canal MF

“As andorinhas são os animais mais felizes do mundo. Muito triste ver o animal mais feliz do mundo em pedaços.” É fazendo referência à felicidade de uma espécie de aves que o autor Flavio Cafiero inicia o romance Diga que não me conhece, ganhador do Prêmio APCA de Literatura em 2021. Em 2024, é assim que se inicia também o espetáculo, adaptado a partir deste livro pela dupla Ester Laccava e Vinicius Aguiar, também diretora e ator idealizador do projeto, em cartaz no Teatro Itália

A condição de felicidade que Cafiero expõe no início desta obra vai se desmanchando ao mostrar as relações de amor, sexo e amizade em uma cidade como São Paulo, cenário emblemático na literatura do autor carioca. O foco aqui são os desafios enfrentados por pessoas LGBTQIA+ acima dos 40 anos, perfil do personagem central. Essa geração, que viveu em uma época na qual assumir sua identidade ou falar abertamente sobre o amor era visto como tabu. Agora, com o fenômeno dos aplicativos e da liberdade nas relações tão extrapoladas, quanto rarefeitas, se depara com um estranhamento sobre como ser e amar. 

Vinicius Aguiar em Diga Que Não Me Conhece. Foto André Arthur

A falta de densidade nas relações afetivas contemporâneas expostas por relacionamentos menos duradouros é algo que para o autor tem relação com as fragmentações e imediatismo que as redes sociais propiciam às novas gerações. E isso reverbera também nas fruições artísticas. Não à toa, para o autor, ver o seu livro sendo adaptado para o teatro é um ato de resistência a essa época de amores líquidos, conceito explorado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Vivemos tempos de fragmentação da atenção e da fruição artística. Nesse sentido, a arte em geral, mas o teatro e a literatura especificamente, são lugares de resistência. Sair de casa e assistir a um espetáculo de uma hora, sem interrupções, é um ato heroico em meio a vidas regadas a internet e smartphones. Mergulhar por horas, dias ou semanas em um livro é a verdadeira realidade paralela nos dias que correm”, completa Cafiero.

A ação da peça tem início com Tato, o protagonista narrador, dando um soco no ex-namorado durante uma festa em plena quarta-feira em um bar no centro da cidade. A partir desse ato, que ninguém sabe se levado à cabo por impulso, revolta, reflexo ou saudade, Tato busca recuperar o fio dos acontecimentos que o levaram até ali, e para onde se pode ir depois de ter o coração partido.

Vinicius Aguiar em Diga Que Não Me Conhece. Foto André Arthur

A obra alia memória e ação num narrativo não linear, em flashes e quadros, que constroem a linguagem da cena na sensação de vagar e confusão com cortes que permeiam a mente e corpo de Tato nessa busca por respostas sobre si e sobre os outros. Não se trata da história de um herói em sua jornada, mas de uma história em parafusos e paranoias, que se perde e se encontra buscando um rumo para seguir. Um retrato e reflexo de 2024, tão sagaz e sensível, quanto cruel e contundente.

A encenação busca uma agilidade, carregada de sons e imagens, convidando a plateia a embarcar no turbilhão de encontros e desencontros dos tempos atuais e, para isso se apoia na acidez da linguagem literária de Cafiero que atravessa temas urgentes e contemporâneos como a onipresença dos remédios e antidepressivos, a influência da tecnologia na manutenção das relações – não somente as amorosas – e sua consequente interferência na formulação de narrativas. 

Narrativas essas que fazem um percurso ao contrário da canção de Chico Buarque, Futuros Amantes, eternizada por Gal Costa: “Não se afobe não, que nada é pra já. O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio num fundo de armário”.

Serviço

Diga que não me conhece

Teatro Itália. Edifício Itália. Avenida Ipiranga, 344, Térreo

Domingos, 19h. Terças e quartas, 20h. R$ 60

Até 27 de outubro (estreou dia 1º de outubro)

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Ficha Técnica

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Serviço

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