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A INCRIVEL VIAGEM DO QUINTAL

“O Que Meu Corpo Nu Te Conta?” usa a autoficção para questões sociais e políticas

Sinopse

O espetáculo, criado e dirigido por Marcelo Varzea, do Coletivo Impermanente, volta ao cartaz com novas dramaturgias e elenco em revezamento no Teatro Estúdio

Por Dirceu Alves Jr.

Sabe aquele texto que cai por acaso na sua mão, seja em uma revista ou postagem de rede social? Há bastante tempo, talvez uns dez anos antes da pandemia, o ator, diretor e dramaturgo Marcelo Varzea leu em um artigo que a cada sete anos todas as células do corpo humano mudam – e o que fica de cada um é o DNA e a memória. Desde 2014, o artista se aprofunda em pesquisas sobre um gênero que agora é moda, mas, naquela época, despertava pouco interesse, a autoficção, e, mais recentemente, talvez por 2019, uma investigação sobre a nudez passou a tomar espaço em seus estudos.

Com a cabeça em ebulição, Varzea juntou gradualmente todas estas provocações e, no seu tempo, moldou uma virada na sua carreira. “Cheguei aos 50 anos com aquela sensação de que deixei de lado um monte de coisas porque estava focado em pagar as contas”, reconhece ele, carioca radicado em São Paulo desde os anos de 1990, hoje, aos 57 anos. E não havia nada de errado com os caminhos profissionais. Pelo contrário, tudo corria bem. Varzea trabalhou muito em televisão, despontou como nome frequente no teatro musical, mas o risco, aquele frio na barriga, havia desaparecido. “Era hora de experimentar e resolver o que ficou pendurado”, pensou.      

Cena da peça O Que Meu Corpo Nu Te Conta? Foto Renato Domingos

Inspirado em uma vivência pessoal, o ator estreou em 2018 como dramaturgo e protagonizou o solo Silêncio.doc, sob a direção de Marcio Macena. No palco, um homem tenta digerir o baque de um divórcio para seguir em frente – e aqui vem à tona o seu primeiro diálogo aprofundado com a autoficção. No ano seguinte, criou e dirigiu um outro monólogo, Dolores, escrito para Lara Córdulla, sobre as reflexões de uma atriz de 50 anos diante de uma decepcionante realidade. É a autoficção, que, neste momento, já contava com fortes representantes, como o uruguaio Sergio Blanco e a brasileira Janaina Leite, manifestada nas investidas do ator, diretor e, agora, dramaturgo em fase de aceitação.

Este longo processo levou ao espetáculo O Que Meu Corpo Nu Te Conta?, a mais radical das experimentações de Varzea, que volta à cena nesta sexta, 4, no Teatro Estúdio, nos Campos Elíseos, em versão revisada e ampliada. “É um trabalho em constante mutação e pode ser transformado o tempo inteiro à medida que surgem novas histórias”, explica. Trata-se da primeira produção do Coletivo Impermanente, criado por Varzea em 2020, que estreou no Sesc Pinheiros em maio de 2022. Foi vista naquele mesmo ano no Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em Santos, no Festival de Curitiba de 2023 e, por onde mais passou, maior que o impacto de encontrar doze corpos nus no palco, fica a identificação com as histórias apresentadas.

Cena da peça O Que Meu Corpo Nu Te Conta? Foto Renato Domingos

Sim, todos estão nus.  A montagem que chega ao Teatro Estúdio reúne dezoito atores e atrizes, entre 23 e 58 anos, que se revezam entre os doze que ocupam a cena a cada noite com seus corpos diversos. Dispostos em um grande tabuleiro, como se fossem peças de um jogo, os artistas revelam histórias autobiográficas sobre temas como assédio, pautas identitárias, vícios e pressões estéticas. É isso mesmo, memória e DNA perpetuados, exatamente como falava o artigo sobre as células. “Os textos partem de um dispositivo de intimidades de cada um, mas que devem ter interesse político e social, porque se não cai no psicodrama e não é o caso”, explica.  

Quatro destes dezoito artistas são novos no Coletivo, vindos dos estados de Alagoas, Pará, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e os que integram o elenco original, nascidos em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Distrito Federal e Paraná, mudaram algumas de suas histórias com o tempo. “Acho que certas cenas caducaram e trocamos, mas as questões do povo preto estão sempre presentes e temos narrativas de assédio sob um novo olhar”, justifica.

Entre os estreantes no grupo, o ator gaúcho Isaac Medeiros apresenta um texto sobre os estereótipos das figuras masculinas do Rio Grande do Sul e sua paixão pelo futebol, enquanto a alagoana Joelle Malta relembra um carnaval no Rio de Janeiro em que foi vítima de um golpe do Boa Noite, Cinderela. O paraense Alexandre Creão, que, além de ator, é advogado criminalista, fala sobre a herança masculina, as pressões paternas em relação aos seus trabalhos e a xenofobia sentida por aqueles que são do Norte. A catarinense Angie Rodrigues, por sua vez, expõe questões sobre o envelhecimento e a perda da avó com Alzheimer, além de um assédio que, filmado, lhe rendeu uma chantagem.     

Outra cena da peça O Que Meu Corpo Nu Te Conta? Foto Renato Domingos

O Coletivo Impermanente nasceu por acaso, em meio ao caos da pandemia. Com a cabeça fervendo e sem perspectivas financeiras, Varzea montou uma oficina virtual para tratar daquela célebre pergunta da autoficção – o que é verdade ou não? De repente, se viu diante de um computador com 300 alunos de vários cantos do país e, quando o curso terminou, chamou alguns dos participantes para novos encontros semanais. “Foram aparecendo mais gente e quando vimos tínhamos um material que renderia um espetáculo”, lembra.

Varzea afirma que o temor de erotizar a nudez desapareceu aos poucos. Para o diretor, artistas e espectadores, devido à proximidade no cenário, se colocam em uma posição de vulnerabilidade que inibe qualquer pensamento que extrapole a narrativa teatral. “É estabelecida uma relação do olho no olho, deixando tudo na palavra, e, muitas vezes, o ator ou atriz conduzem a visão do público com a mão, apontando para alguma parte do próprio corpo”, diz. “É como se ficasse combinado ‘eu estou vulnerável e vou deixá-lo também’.”

Como ator, Varzea excursiona pelo Nordeste na pele do produtor e compositor Ronaldo Bôscoli (1928-1994) no espetáculo Elis, a Musical, que, na sequência, chega ao Teatro Riachuelo, no Rio, e ao Teatro Claro, em São Paulo. A pena do dramaturgo não ganha trégua, e as peças inéditas saltam da sua imaginação. Palíndromo será dirigida por João Fonseca com Stella Maria Rodrigues e Yasmin Gomlevsky no elenco, e Narciso, “um Jean Genet rodriguiano”, deve ganhar encenação assinada por Leopoldo Pacheco.

O próprio autor vai dirigir Código de Ética, com interpretações de Isaac Medeiros e Mariah Viamonte, e finaliza o solo Amarelo, texto escrito para o ator Ranieri Gonzalez, o único desta leva capaz de dialogar com a autoficção. “Os demais são dramas bem clássicos”, avisa. “Não pretendo ser um especialista da autoficção, comecei a usar porque acho um ótimo dispositivo para dirigir atores, já que a pessoa puxa um fato da memória e vai entendendo o caminho do personagem.” 

Serviço

O Que Meu Corpo Nu Te Conta?

Teatro Estúdio. Rua Conselheiro Nébias, 891, Campos Elíseos

Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. R$ 80

Até 27 de outubro (estreia 4 de outubro)

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Ficha Técnica

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Serviço

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