André Kirmayr e Lavínia Pannunzio interpretam a dupla de escritores em peça escrita e dirigida por Kiko Rieser que estreia no CCBB
Por Dirceu Alves Jr.
Uma figueira enraizada na Casa do Sol, a chácara nos arredores de Campinas onde a escritora Hilda Hilst (1930-2004) se exilou em meados da década de 1960, era capaz de milagres. Bastava acreditar, fazer um pedido diante dela e o desejo virava realidade. O jovem escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) odiava sua voz, que oscilava entre um grave frágil e um agudo estridente, não combinava com o adulto que já era. Desiludido com a literatura e perseguido pelos militares, o rapaz passou uma temporada junto a Hilda e, em uma noite de lua cheia, conversou com a árvore. Poucos dias depois, a voz começou a engrossar.

Protagonizado por Lavínia Pannunzio e André Kirmayr, o espetáculo Hilda e Caio, que estreia nesta quinta, 30, no Centro Cultural Banco do Brasil, oferece um recorte ficcional sobre a convivência entre o escritor gaúcho e a autora paulista na famosa casa de campo no começo dos anos de 1970. A peça, escrita e dirigida por Kiko Rieser, coloca Caio em uma crise existencial, afogado em questionamentos sobre sua identidade e vocação literária. Hilda, por sua vez, cansada das bajulações do mercado editorial e ávida pelo sossego, buscou uma conexão consigo mesma perto da natureza. Caio chegou na Casa do Sol amedrontado e, provocado pela colega, saiu de lá pronto para ser escutado pelos leitores que conquistaria nas décadas seguintes. “Mesmo se você parar de escrever, os militares não o deixarão em paz”, constata Hilda, na pele de Lavínia. “O que eles querem é calar a gente.”
A metáfora em torno da história da voz fina – que é real – norteia a peça como simbologia para o amadurecimento do escritor, que sairia da Casa do Sol direto para o exílio na Europa, com passagens por Londres e Paris. Kiko Rieser, de 36 anos não se lembra exatamente quando leu o primeiro livro de Caio. Acredita que tenha sido pelos 16 ou 17, final da adolescência, e arrisca comentar que foram os contos de Os Dragões não Conhecem o Paraíso (1988). Sua trajetória profissional, porém, tem sido marcada por cruzamentos com o autor, algumas vezes, marcados pela pura coincidência.
Rieser escreveu e dirigiu em 2016 o monólogo Amarelo Distante, interpretado por Mateus Monteiro, apoiado nos contos Lixo e Purpurina e Anotações sobre um Amor Urbano. Naquele mesmo ano, repetiu as funções, a convite do ator André Grecco, no solo A Dama da Noite, inspirado no conto homônimo, e, no começo de 2023, também escreveu e dirigiu Nasci para Ser Dercy, espetáculo em que a atriz gaúcha Grace Gianoukas deu um show no papel da comediante Dercy Gonçalves (1907-2008). Bem o que esta informação tem a ver com o resto? É fácil. “Grace me contou que, graças ao Caio, saiu do Rio Grande do Sul e veio morar em São Paulo, então até o nosso trabalho em Dercy eu devo a ele”, explica Rieser.
As ideias em torno de Hilda e Caio nasceram naquele mesmo profícuo 2016 marcado por Amarelo Distante e A Dama da Noite. O diretor Kleber Montanheiro procurou Rieser e comentou sobre a possibilidade de fazer alguma coisa sobre a história da dupla na Casa do Sol. O dramaturgo escreveu algumas cenas, mas o projeto não decolou e só voltou a mexer na história no confinamento da pandemia. Montanheiro, agora envolvido em outros trabalhos, assina o cenário e os figurinos da atual montagem. “Eu tinha a preocupação de que a Hilda não parecesse uma escada para o Caio, então imaginei a peça toda como um embate de ideias entre dois”, afirma Rieser. “Aos poucos, ela fortalece a relação com o discípulo e até exerce um sentimento maternal sobre ele.”
A presença forte de Lavínia Pannunzio, de 57 anos, já reduziria de maneira considerável a possibilidade de Hilda parecer uma coadjuvante de Caio. A atriz, no entanto, trata de avisar que ninguém deverá enxergar nela a figura da escritora. A sua busca é pela interpretação mais simples possível, sem qualquer afetação, para conquistar o espectador pela palavra. “Uso uma peruca, uma bata, mas, para mim, é difícil espelhar qualquer outra pessoa, fujo da mimetização e o importante é colocar em cena as ideias dos dois”, afirma.
Lavínia aposta que Hilda estava ali para abrir os olhos de Caio quanto ao talento que o próprio não conseguia enxergar. Não à toa, nesta fase, ela, fascinada pela ciência, desenvolvia experiências paranormais em que tentava conversar com os mortos e registrar estes contatos através de um gravador. “É uma mulher entre a maturidade e a loucura, uma ideia que, aliás, sempre a perseguiu porque seu pai era esquizofrênico”, define a atriz. “Considero fascinante a Hilda, antes dos 40 anos, ter aberto mão dessa ilusão social e cultural que tentam nos vender até hoje para morar em uma fazenda e viver suas obsessões,”

Em busca de seu próprio Caio, o ator André Kirmayr, de 37 anos, esbarrou em algo que poderia ser um entrave, entretanto, só beneficiou a composição. Ele não tinha qualquer intimidade com a obra ou o universo do escritor e partiu para uma construção livre de ideias preconcebidas. “São raros os vídeos ou entrevistas do Caio e, dessa fase, dele com 24 anos, não tem absolutamente nada para eu me alimentar, o que me deu total liberdade poética”, revela.
Para o intérprete, Caio atravessava uma fase de desencanto, de uma possível desistência – algo comum em um período de grande tensão como aquele –, e Hilda surge como o instrumento capaz de instigar a sua mudança e lhe apontar perspectivas, tanto na literatura quanto na vida. “Ele enfrentou um rito de passagem simbólico, não à toa considero essa questão da mudança da voz dele o meu grande desafio”, assume. “Passei mais de um mês trabalhando nisso, porque o Caio tinha uma fala cadenciada, calma e eu não podia esbarrar em caricatura alguma.”
Hilda e Caio. Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112, centro. Quinta e sexta, 19h; sábado e domingo, 17h. R$ 30,00. Até 17 de dezembro. A partir de quinta (30).
