A intérprete representa uma mulher em três fases distintas da vida para tratar de miscigenação, misoginia e violência
Por Dirceu Alves Jr.
Prestes a completar 58 anos, a atriz paulistana Ester Laccava puxa da memória uma frase muito ouvida de sua mãe, a italiana Giuditta, que, aos 14, chegou ao Brasil fugida da Segunda Guerra Mundial e teve a infância e a adolescência confrontadas com a dureza da vida real: “Guerra é urgência, minha filha, você deve saber dar ponto, caso precise curar uma ferida ou tenha uma dor de dente, então, nestas situações, você não quer ouvir poesia”.
Mesmo que, diversas vezes, a artista tenha discordado do realismo pregado pela sofrida Giuditta, hoje, movida pela maturidade, reconhece as razões da mãe. Com a estreia de Curtume, Dias Secos Inundados de Acácia, texto de Denizart Fazio, nesta quarta, 22, no Espaço Cênico do Sesc Pompeia, Ester, que protagoniza e dirige o solo, voltou o seu olhar para uma temática social e aflitiva. “Esse cara fala de miscigenação, de misoginia, de pessoas que nascem sabendo que o couro delas vai ser arrancado”, conta a atriz, entusiasmada com a escrita do autor. “Eu trago para a cena uma mulher do povo, não sei se vou fazer bem, mas, perto dos 60 anos, o que não quero é focar em uma elite, tenho coisas urgentes para falar.”
Em cena, Ester é um corpo feminino em três fases distintas. No prólogo, aparece como uma menina de 11 anos, com tranças enormes, depois surge adulta, mãe de seis filhos, e, por fim, é uma velha, que recebe a visita de um investigador em busca de informações sobre a morte do dono do curtume da cidade. “Aquele homem era um boi, um boi com propriedades”, diz a personagem ao interlocutor. Como uma narradora, a intérprete joga os acontecimentos para o campo da memória e conduz o espectador ao entendimento do quanto a personagem apanhou e bateu para se defender da sociedade.
O texto de Fazio caiu nas mãos de Ester ainda na pandemia, por sugestão dos dramaturgos Lucas Mayor e Marcos Gomes, que o conheceram em uma oficina. “Mostra isso para a Ester porque ela é perfeita para levar essa história ao palco”, sugeriu um deles. Ainda no isolamento, a atriz fez uma leitura virtual para um grupo de amigos, e o entusiasmo de Fazio chegou a gerar ansiedade. “Calma, não me pressiona, quando der vou montar, mas será no meu tempo”, avisou para o autor.
Formada pela Escola de Arte Dramática (EAD), Ester construiu uma trajetória de rara sofisticação, com estudos na França e nos Estados Unidos e espetáculos de prestígio. Ano passado, celebrou quatro décadas de carreira e, há pelo menos 20 anos, assumiu a produção de praticamente tudo o que leva ao palco. “Faço escolhas difíceis, pago um preço alto, mas a minha consciência está tranquila porque virei uma atriz autoral, uma criadora, pautada pelo meu entendimento de vida e não por um plano de carreira”, reconhece. “Vejo meus colegas fazendo teatro gourmet e respeito, mas para mim não bastaria.”
Entre 2007 e 2009, Ester viveu um paradoxo, o tão sonhado sucesso de público, e começou a se sentir desestabilizada. A comédia A Festa de Abigaiu, do inglês Mike Leigh, saltou de um teatro lotado de 173 lugares para outro de quase 700 e, depois para um terceiro, de 350, e os ingressos evaporavam da bilheteria. O público gargalhava e novas temporadas eram anunciadas. Angustiada, a atriz e produtora encerrou as atividades da peça vista, naquela época, por mais de 50 mil espectadores e partiu para um monólogo, A Árvore Seca, que lhe deixava realizada, mesmo que diante de plateias intimistas. “Eu quero é me comunicar da forma que acredito, seja para 20, 200 ou 2000 pessoas, não me interessa o número”, justifica.
Desde Ossada (2019), peça baseado em textos da inglesa Maureen Lipman, da polonesa Wislawa Szymborska e da americana Laurie Anderson, a inquietação de Ester se converteu em radicalidade. Em uma linha próxima da performance, ela mergulhou em trabalhos solos que, além de protagonizar, dirige, colabora na dramaturgia, idealiza a cenografia e até a trilha sonora. “Tem gente que me faz críticas, mas por que não posso me autodirigir?”, indaga.
Em 2020, ápice pandêmico, criou e dirigiu o híbrido de peça-filme A Árvore, a partir de texto da dramaturga Silvia Gomez, tendo Alessandra Negrini como protagonista, e, ano passado, foi a vez de Ouro [O]Culto, em que discutiu o real valor pago ao trabalho dos artistas. “Para mim, não é suficiente fazer Nelson Rodrigues, Plínio Marcos ou Anton Tchekhov porque, neste momento, só alimentaria a minha vaidade”, afirma. “Estou me preparando como criadora e atriz para, daqui uns dez anos, montar Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O’Neill, porque sei que para fazer bem aquilo preciso de uma experiência que ainda não tenho.”
Em meio a tanto discurso, a prática de Ester pode até ser questionada por alguns, como excesso de centralização ou dificuldade de se adequar ao coletivo. Ela garante que somente foge do óbvio – e sabe que tem repertório para isso. “Quando me dizem que sou uma artista visceral, eu rio, afinal, são 40 anos pedalando essa bicicleta, então eu tenho técnica de sobra”, rebate.
Ester também avisa que não está encastelada, por isso quer dialogar com novos dramaturgos e ouvir o que gente com vivências distintas da sua podem lhe acrescentar. “Eu não chego para meu filho de 25 anos e digo que essa geração não sabe nada, porque o mundo mudou, a troca é necessária e muitos dos meus colegas não se dão conta disso”, comenta. “Estamos em guerra, olha a quantidade de gente morando nas ruas, sem chance de comer e trabalhar e, por isso, o que tenho que fazer agora é montar Curtume e ficar longe de egos e vaidades.”
Serviço
Curtume, Dias Secos Inundados de Acácia.
Sesc Pompeia – Espaço Cênico. Rua Clélia, 93, Pompeia.
Terça a sexta, 20h30. R$ 40.
Até 15 de dezembro. A partir de quarta (22).